Prefácio de Lança-chamas, de Regina Azevedo - Editora Peirópolis

Prefácio de Lança-chamas, de Regina Azevedo

Fazer da língua a própria bala

 

Maria Luíza Chacon*

 

Plantar o trigo e refazer o pão de cada dia
Beber o vinho e renascer na luz de todo dia
A fé, a fé, paixão e fé, a fé, faca amolada
O chão, o chão, o sal da terra, o chão, faca amolada

(Milton Nascimento e Ronaldo Bastos)

 

Há quase dez anos eu e Regina nos conhecemos e nos tornamos amigas – primeiro admirei a vivacidade com que ela, ainda pré-adolescente, se debruçou sobre a poesia, a forma como isso acendia os seus olhos. Depois, uma série de afinidades nas formas de ver as coisas e de sentir o mundo aconteceu entre nós, entre duas capricornianas nascidas no dia 11 de janeiro. Ser amiga de Regina é aprender sucessivamente com a sua generosidade, com a sua forma de estar atenta, de permanecer curiosa, e também com a segurança com que ela dá cada passo: não por ser cheia de certezas, mas por parecer tão consciente do inconciliável que compõe a escrita de cada poeta e de cada escritor. Regina faz o que tem de ser feito, o que precisa fazer. E é por essas e outras que a considero um dos maiores presentes que viver na cidade de Natal me deu.

Este livro reúne poemas inéditos e já publicados da poeta potiguar, e se divide em quatro partes: “Capim”, cujos poemas giram em torno da infância e da relação do eu-poético com os avós; “Mar aberto”, onde triunfam poemas ligados à juventude e ao amor; “Multidão”, que, como a palavra indica, se interliga à luta que se dá no encontro e na coletividade; “A poeta”, com poemas relacionados ao ofício de poeta e à própria escrita, em um movimento por vezes metalinguístico. Já o título que nomeia a obra, Lança chamas, despojado do hífen que se utilizaria para indicar o aparelho que projeta uma chama longa ou controlável, parece dizer mais respeito ao gesto em si, ao exercício de lançar fogo próprio da linguagem poética que aqui se estabelece. A obra anterior a esta, publicada por Regina neste ano de 2021, possui título (Vermelho fogo) e poemas que vão em uma direção semelhante.

Um dos primeiros poemas do livro, “Vovó flutuava na praia”, merece destaque. Com epígrafe de Gonçalo Manoel Tavares (“por mais que se ande, o que se andou permanece no corpo”), esse poema escancara com delicadeza dolorosa a irreversibilidade do tempo celebrada e renovada pelo signo do instante. Se, por um lado, o instante é fugidio, por outro é marca indelével do corpo: essa parte, para a qual não se pode retornar e para a qual, no entanto, se retorna, compõe os percursos que ele empreende. Este poema, que para mim marca um dos pontos altos do livro, culmina na imagem final (que fere com afabilidade a quem o lê) do eu-poético criança na praia, junto à avó, “eu ao lado dela correndo/ contra o vento, correndo contra o tempo/ as mãos em concha, juntava um punhado/ de mar e molhava seus pés”.

A questão do tempo, inclusive, também figura em outros poemas. Em “O sertão sou eu”, o verso “passeio na estrada do tempo” sintetiza uma das tônicas da obra, que vai da reminiscência – e do pertencimento a um chão, a lugares como a praia e o sertão – ao futuro que “brinca de balanço/ e mira alto”.

Já em “Azul intenso”, poema que nomeou o segundo livro da poeta (Por isso eu amo em azul intenso, publicado em 2015), lemos: “o tamanho da dor é a força do voo” e “é pela fantasia costurada no meu peito/ desde os sete, quando recusei medicina/ que vejo esperança no céu”. Aqui, a dor desponta como força e fica evidente o início do caminho do eu-poético em termos de fantasia – a perda dos avós, essa angústia, é capaz de lançar o eu-poético na liberdade da fabulação e da poesia.

No curioso poema “Tempo”, presente na segunda seção do livro (“Mar aberto”), surge uma forma específica de vivenciar o tempo; isto é, de conhecê-lo por meio do corpo do ser amado, enquanto aprendizado de um idioma que lhe é próprio. Daí é que o eu-poético tira do pulso o relógio, marcador do tempo ordinário, para então dar vazão a um saber das horas por meio dos olhos, do corpo e da fala do ser amado que, no final das contas, inevitavelmente vai embora. Como o próprio poema enfatiza, alcançar esse “saber” do outro tem algo de trava-língua e desafio, de experiência abismal e demorada. Um dos versos que finalizam o poema menciona o Sol, significativo marcador do dia, enquanto luminosidade distante, que devido à partida do amante já não irradia para dentro da casa. Dessa forma, o tempo parece em suspenso: “depois que você se foi/ não há quem deixe o sol entrar/ e talvez por isso/ esteja tudo/ adormecido”. Esse desfecho retorna à mente mais adiante na leitura do livro, quando o eu-poético afirma, de modo certeiro: “poesia não é só luz (ainda bem)”. Pois bem, o leitor encontrará parcelas de luz e de sombras nestas páginas escritas por Regina Azevedo.

A potência dos encontros está presente também em poemas como “Setor 02”, no qual o eu-poético fala das suas vivências na faculdade de Letras: “ali não há sinal, não há toque/ como em outros lugares/ nunca acertamos o tempo/ no setor 02/ não somos bons de inícios e fins/ gostamos mesmo é de nos perder/ em olhares demorados/ gostamos mesmo é do almoço no bar de mãe/ gostamos do banquinho do chinchila,/ da biblioteca, de ler/ na sombra de uma árvore”. A reincidente imagem da entrada do sol que, nesse caso, consegue passagem, aponta para um arejamento que se dá pela via da coletividade e da vida partilhada.

Com uma linguagem prosaica que, aliás, faz-se presente no livro como um todo, o poema autobiográfico que encerra a primeira parte passa pela exposição do nome real e completo da poeta, o seu sonho com dois versos de um poema (um deles é “um poema nasce do escuro”), a ida ao oftalmologista, o exame de vista que traz à mente os analfabetos e que deságua na lembrança sobre seus avós, Cícero e Egídia. Ao final, diz o poema: “vejo os meus avós/ na faculdade de letras/ vejo meus avós/ no espelho/ vejo meus avós/ na pele ensolarada/ dos trabalhadores/ um poema nasce do escuro/ e depois, o que vem?”. Esse questionamento final ressoa após a leitura – depois do poema, o que vem? A ausência não continua? O que pode a palavra? Em outros poemas da autora, tomar a palavra consiste em um exercício de liberdade e revide; já nesse, a tomada de palavra não parece apontar para uma direção oposta, mas aprofunda a dúvida acerca dos limites da linguagem.

Os poemas “Em Mar aberto” e “Festejo ao fogo”, que aparecem nessa ordem no livro, trazem à tona a revelia dos afetos cujos instrumentos de controle social não podem conter: “é proibido soprar um dente de leão/ pra espantar o medo./ assim como é proibido encontrar/ e lamber com vontade o mar aberto que existe/ no meio de cada pessoa”, dizem versos de “Em Mar aberto”. E mais adiante, no mesmo poema: “a sorte/ é que nesse momento, diante da cerca elétrica,/ da placa, da assinatura de autoridade,/ finjo não saber ler absolutamente nada”. “Festejo ao fogo”, por sua vez, demarca o rito sexual no qual o orgasmo, visto como “anestesia contra bombas/ de efeito moral”, reafirma o poder do afeto sem reservas. Em ambos os poemas, o eu-poético se coloca de peito aberto para o mundo, despojado do receio de ser atingido e afetado, por isso é que o afeto em Lança chamas se erige como algo revolucionário. Com muita sobriedade, ainda mais para os nossos tempos, a potência e insubmissão dos afetos torna a aparecer em versos como “no brasil de 2018,/ lutar e beijar/ jamais esquecer”.

Poemas que falam alto ao nosso presente estão contidos na terceira parte (“Multidão”). Aparecem aqui temas como os mortos por Covid-19 em um Brasil devassado por um governo completamente irresponsável; a ruptura do pacto social brasileiro e a tensão crescente entre direita e esquerda; a libertação das mulheres que só se dará com a demolição de uma cultura patriarcal e machista (seja para a mulher que sai sem sutiã de “Em pleno século XXI”, seja para a mulher que, quando fala, faz com que o homem engravatado se engasgue com a própria gravata).

Na quarta parte (“A poeta”), o desígnio da escrita ganha força. Versos como “impossível escrever/ se estivesse de mãos dadas/ o tempo todo” se referem à solidão essencial da escrita, fincando um lugar para essa experiência que difere das dinâmicas da coletividade e da vida compartilhada tão recorrente em Lança chamas, ampliando seus horizontes.

O corpo político, arma que atravessa todo o livro, encontra ênfase em poemas como “quando você olhar pra essas pernas…”, “Passo a passo” e “Escrevo poemas”. É, aliás, deste último o verso que nomeia este livro – “escrevo como quem lança chamas”. Regina Azevedo desponta, neste Lança chamas, não só como poeta que lança labaredas, mas também como aquela que inspeciona o fogo, o brilho de paixão e fé, faca amolada.

 

*Maria Luíza Chacon é escritora, professora de língua portuguesa e doutoranda em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte

 

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