Presença de Henriqueta: Yeda Prates Bernis
Depoimento
Yeda Prates Bernis
Foi-me oferecida pelos organizadores da Semana Henriqueta Lisboa a oportunidade de, mais uma vez, homenagear a mestra e amiga. É honra que agradeço, comovida. Tarefa difícil esta, de fazer conter em alguns minutos e poucos parágrafos sua personalidade fascinante e minha emoção ao evocar-lhe a figura querida!
Falar de Henriqueta Lisboa é para mim buscá-la no tempo e no espaço perdidos, reviver o mais puro de meus sentimentos, tentar acariciar seu coração distante com o afago de minhas mãos.
Limitar-me-ei a falar de Henriqueta pessoa humana, com quem tive a alegria de conviver intimamente, durante seus últimos vinte anos de vida. E reivindico, sem modéstia, o fato de ter sido uma das pessoas mais chegadas a seu convívio.
Minhas primeiras lembranças dela são da sala de aula do curso de letras neolatinas, da faculdade.
Frágil na aparência física, sempre bem-posta, nunca faltando ao compromisso de ensinar, lá vinha ela carregando maços de papel datilografado, contendo informações e textos sobre escritores latino-americanos, suprindo assim a nossa falta involuntária de acesso à bibliografia necessária, comum já àquela época.
Aristocrata por berço e vocação, Henriqueta Lisboa era o exemplo mais nítido de mineiridade, no que isso significa de melhor. Sua poesia é toda perpassada pelo espírito de Minas. Seu amor à terra mineira, à sua gente e à sua história está inscrito poeticamente em sua obra.
O comedimento com que sempre viveu era uma de suas características. Recebia com simplicidade, vestia-se sem ostentação – embora impecavelmente –, amava mais usar o silêncio do que a voz. Sabia ouvir. E, quando se expressava, em voz amena, buscava a sabedoria de quem viveu em profundidade e em equilíbrio, conhecendo a fugacidade de tudo e colocando o amor e a prudência como norteadores de sua fala. Possuía a serenidade como meta de vida e a exercitava mesmo nos momentos de maior desafio. Quando sofria, fazia-o em silêncio. (A propósito, confessou-me que só conseguia expressar-se pela poesia quando estava muito serena.)
Viveu sempre com disciplina. A partir de sua letra impecável, que indicava autocontrole, ou nas tarefas mais simples do dia a dia, Henriqueta sempre demonstrou exercitar o autodomínio, a meticulosidade, a ordem e o espírito disciplinado. Buscou seguir à la lettre as palavras de Cristo, reforçadas pela visão da Igreja.
Quem pensar, no entanto, que minha amiga estava ausente do cotidiano do mundo se engana. Gostava de Chico Buarque com entusiasmo juvenil e torcia pelo Cruzeiro Esporte Clube, mesmo considerando o futebol uma dança, mais do que um esporte. Admirava homens bonitos – um deles era o apresentador de telejornal da Manchete.
Não admitia maledicências ou conversas frívolas. Era discretíssima em relação a algum escândalo, qualquer que fosse o acontecimento ou a pessoa nele envolvida. Era fiel às suas amizades, não permitindo qualquer censura a quem quer que fosse, mesmo que a merecesse.
Era apaixonada pela poesia. Tinha respeito pelos poetas, mesmo aqueles mais ingênuos ou iniciantes. É que via neles o desejo de reverenciar a arte, que foi o leitmotiv de sua vida.
Também a literatura infantil foi alvo de seu desvelo, tanto no trabalho pessoal como no incentivo aos escritores desse ofício. E deixava claro que essa literatura deve conter, sempre que possível, a poesia e a linguagem depuradas, reivindicando para a criança a capacidade de apreensão da beleza. Assim, incentivou escritores infantojuvenis, como é o caso de Bartolomeu Campos de Queirós, a construir textos poéticos de alto nível literário, instigando a sensibilidade e a inteligência da criança.
Gostava de receber amigos, com ocupações intelectuais, em sua casa. Ali conheci vários deles, já que ela fazia questão de me introduzir, sempre mais, no mundo das letras.
Tímida, temia assaltos. Seu temor tinha justificativa. Henriqueta pouco saía de casa, nos últimos anos de vida. E sabia do que se passava do lado de fora de suas paredes pelas notícias violentas dos jornais e da televisão. Acompanhava com entusiasmo algumas novelas, quando estas mereciam sua aprovação crítica.
Sabia que sua obra não era acessível ao grande público. Mas não fazia concessões. Dizia preferir ser compreendida por poucos a ter que simplificar o conteúdo de suas emoções.
Eu sempre a homenageava no Dia das Mães, levando-lhe flores e dizendo-lhe ser ela minha mãe espiritual. Certa vez, levei-lhe um buquê de strelitzas, que ela ainda não conhecia. Ficou tão encantada com a beleza agressiva da flor que escreveu um poema inspirado nela, expressando assim, delicadamente, sua gratidão pelo meu gesto.
Afazeres domésticos não eram o forte da sua personalidade. Ainda assim, tinha orgulho de um doce de beterraba que inventara e o oferecia aos que a visitavam.
Acreditava no amor único, tendo-o professado com pureza, discrição e até pudor. Guardou-o como quem guarda o maior tesouro da terra, deixando-o transparecer, apenas, em cintilações de sua poesia.
Possuía grande orgulho da família. Contava fatos interessantes de seu pai, deputado federal, e de sua mãe, ainda com sentimento de orfandade.
Que me desculpem as outras, mas Abigail – sobrinha que mais se assemelhou a ela, tanto fisicamente quanto na postura diante da vida – era a predileta, sua filha por eleição.
Teve um anjo bom, ao longo dos anos, a seu lado, fiel e dedicada acompanhante até seus últimos momentos: Vicentina.
Hoje, mais do que sempre, ela está no colo de Deus.
Elegia
A Henriqueta Lisboa
(in memoriam)
O que se perdeu foi pouco.
Mas era o que eu mais amava.
Henriqueta Lisboa
O poeta está morrendo.
O mundo é um minuto de silêncio
em sua lida
e as coisas, em volta, se aquietam.
Por um débil momento
o poeta quer o colo da vida.
Palavras se debruçam
sobre ele e soluçam.
A palavra solidão
é filete de chumbo
derretendo o coração.
O poeta sabe que está morrendo,
seu estro está cansado,
não mais fala de amor.
Sua poesia se achega ao lado
da janela e busca luz.
Uma nuvem se derrama sobre o agora
inexorável – mortalha em ouro e prata.
Fecha-se, de vez, a caixa de Pandora
quando frouxo laço
ligando céu e terra
se desata.
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