Um canto para o rio - Relato etnográfico - Editora Peirópolis

Um canto para o rio – Relato etnográfico

O rio Doce

Parque Estadual do Rio Doce (PERD)

O rio Doce, que serviu de inspiração para este livro, percorre 888 quilômetros até chegar ao oceano Atlântico. Suas nascentes estão em Minas Gerais, na serra da Mantiqueira e na serra do Espinhaço, e sua bacia abrange 225 municípios, sendo 200 no estado de Minas Gerais e 25 no estado do Espírito Santo.

Originalmente, o vale do rio Doce era uma região de Mata Atlântica, águas abundantes, terras férteis e minerais preciosos. Foi o último refúgio dos índios chamados pejorativamente de “botocudos”, denominação que na verdade englobava uma série de etnias, como Aknenuk, Gutkrak, Krenak, Jiporok, Pojixá, Naknenuk, dentre outras.

Com as iniciativas de expansão do território nacional no século XVIII e, mais tarde, com grandes projetos de desenvolvimento agropecuário e industrial, especialmente na primeira metade do século XX, a mata foi devastada para fornecer matéria-prima à indústria ou para dar lugar a grandes fazendas. Também foram implantadas diversas hidrelétricas e projetos de mineração ao longo da bacia do rio Doce. Nesse processo, algumas consequências ambientais graves foram a erosão do solo, assoreamento de nascentes, poluição das águas e perda da biodiversidade. Além disso, os povos que lá viviam, sobretudo indígenas e camponeses, foram gradativamente perseguidos e expulsos de suas terras.

Imagem da foz do Rio Doce no Oceano Atlântico, semanas após o desastre em Mariana.

Em 5 de novembro de 2015, houve o rompimento da barragem de rejeitos de Fundão, de propriedade das mineradoras Samarco/Vale/BHP Billiton, no distrito de Bento Rodrigues, a 35 quilômetros do município de Mariana (MG). A lama tóxica liberada causou destruição ao longo de todo o rio Doce, e os danos socioambientais em uma das principais bacias hidrográficas do Sudeste são incalculáveis. Esse desastre, que os movimentos sociais consideram uma tragédia-crime, deixou 19 mortos, impactou áreas de atividades produtivas, deixou agricultores, pescadores e comerciantes sem trabalho, devastou matas ciliares, provocou a interrupção de hábitos de lazer, fez com que várias cidades ficassem sem água potável e produziu a mortandade de biodiversidade aquática e terrestre. As diversas comunidades que vivem nas proximidades do rio e dele dependem, foram as mais afetadas.

Rua de Bento Rodrigues após o desastre, por Romerito Pontes.

Desde o ocorrido, muitas pessoas, instituições e movimentos sociais têm se organizado para buscar o protagonismo popular no processo de mitigação dos danos na bacia, cobrar das empresas e das autoridades competentes o ressarcimento dos prejuízos, o devido amparo aos atingidos, e reivindicar outro modelo de mineração e de desenvolvimento para o Brasil, que preze pela soberania popular e pela sustentabilidade da vida. Esses grupos procuram fomentar a agroecologia, tecnologias sociais sustentáveis, saberes ecológicos tradicionais e outras iniciativas ecológicas que contribuam para a recuperação do rio Doce e a preservação de suas nascentes.

Infelizmente, mesmo com todo o ocorrido com o rio Doce, nosso coração voltou a doer mais uma vez em janeiro de 2019, com o rompimento da barragem I da mina Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), cuja lama atingiu diretamente centenas de pessoas, deixando 259 óbitos e 11 desaparecidos, degradou 112 hectares de florestas nativas e contaminou o rio Paraopeba, chegando a atingir o rio São Francisco. Neste caso, a tragédia humana foi maior que a de Mariana.

Esse novo episódio reafirma que o problema é estrutural e não tem sido devidamente tratado pelas empresas e autoridades, pois caso contrário, o rompimento em Brumadinho poderia ter sido evitado. De acordo com o Cadastro da Política Nacional de Segurança de Barragens, 56 barragens de mineração no território nacional não possuem estabilidade atestada. Dessas, 36 estão no estado de Minas Gerais.

Mesmo diante desse quadro, o país prosseguiu com uma série de ações que flexibilizam leis ambientais, comprometem os recursos naturais e a vida da população, criando um contexto propício para a reincidência de episódios como os ocorridos em Mariana e Brumadinho. Assim, faz-se urgente um processo contínuo de debates, conscientização e ação em relação ao tema, para que sejamos capazes de mudar o rumo trágico que estamos seguindo. É preciso não esquecer!

Nesse sentido, este livro tem o intuito de atuar como uma singela semente, que ao recordar esses tristes eventos de forma metafórica busca tocar os corações de crianças, jovens e adultos, inspirando o desejo profundo de atuar em defesa das águas, da terra, da vida.

 

Fontes consultadas

MINSTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Superintendência de Planejamento de Recursos Hídricos (SPR). Conjuntura dos recursos hídricos no Brasil. Informe 2015. Encarte especial sobre a bacia do rio Doce. Rompimento da barragem em Mariana (MG). Brasília: Agência Nacional de Águas, 2016.

COORDENAÇÃO DE DEFESA CIVIL DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Informações do Desastre Barragem de Rejeitos em Brumadinho – 28/12/19. Disponível em: http://www.gabinetemilitar.mg.gov.br/index.php/component/gmg/page/787informacoes-do-desastre-barragem-de-rejeitos-em-brumadinho-28-12-19. Acesso em: 30 set. 2020.

ESPÍNDOLA, H. S. Vale do rio Doce: fronteira, industrialização e colapso ambiental. Fronteiras: Journal of Social, Technological and Environmental Science, v. 4, n. 1, jan-jul. 2015, pp. 160-206.

MILANEZ, B.; LOSEKANN, C. (Orgs.) Desastre no vale do rio Doce. Antecedentes, impactos e ações sobre a destruição. Rio de Janeiro: Folio Digital Letra e Imagem, 2016.

MILANEZ, B. et al. Minas não há mais: Avaliação dos aspectos econômicos e institucionais do desastre da Vale na bacia do rio Paraopeba. Versos – Textos para Discussão. PoEMAS, 3(1), 2019, pp. 1-114. ISSN: 2526-9658

PARAÍSO, M. H. B. Os botocudos e sua trajetória histórica. In: CUNHA, M. C. da (Org.). História dos índios no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. pp. 423-30.

 


 

As inspirações do livro Um canto para o rio

Por Roberta Brangioni Fontes

Fonte: Caravana Territorial do Rio Doce, 2016.

Relato etnográfico

Nasci e fui criada nas proximidades do rio Piranga, um dos afluentes do rio Doce, no município de Ponte Nova, Minas Gerais. Em meio às minhas andanças vida afora, tenho trabalhado como educadora e pesquisadora com crianças, jovens e adultos em projetos de educação popular, agroecologia, valores e direitos humanos. Foi assim que, numa das curvas do caminho, cheguei às margens do rio Doce para trabalhar como pesquisadora no Assentamento Primeiro de Junho, o que ocorreu alguns meses após o rompimento da barragem de rejeitos de Fundão, das empresas Samarco/Vale/BHP Billiton, que atingiu o rio Doce em toda sua extensão.

Aí, pude ver de perto os rastros de um dos maiores desastres socioambientais do país. Um rio de lama, água imprópria para consumo, peixes mortos, agricultura inviabilizada, área de banho e lazer às margens do rio interditada, matas ciliares contaminadas, memória roubada e trajetórias interrompidas. Ao mesmo tempo, vi gente de muita coragem e sabedoria, empenhada em fazer de novo a vida renascer. Pessoas e cenas que muito me inspiraram.

Roberto Antônio Luz, considerado um guardião de sementes crioulas na comunidade, empenhava-se em reflorestar e preservar as nascentes que correm para o rio Doce. Coisa que fez toda uma vida, mas agora, diante do monstro de lama, fazia com dedicação especial.

Outros companheiros e companheiras mais antigos, como Maria Medeiros, Milanês, Zé Doril, Jonas e Bogé também abraçavam a missão de cuidar das nascentes e compartilhavam muitos saberes sobre as águas, os peixes, as sementes, as árvores.

Maria era responsável por uma vistosa horta comunitária agroecológica, proporcionando alimento saudável, regado com água de nascente, em meio ao caos.

Passagem da Caravana Territorial do Rio Doce pelo Assentamento Primeiro de Junho. Fonte: Caravana Territorial do Rio Doce, 2016.

Roberto Antônio Luz. Plantio no entorno das nascentes. Fonte: Yasmin Amarante, 2018.

Horta agroecológica. Fonte: Rodrigo Almeida, 2018.

Maria, com a bandeira na mão, e outros assentados com os frutos da horta. Fonte: Rodrigo Almeida, 2018.

Tarla, próxima ao poço de peixes. Fonte: Roberta Fontes, 2016.

Já a juventude de lá contava com educadores do campo, recém-formados ou em formação, que semeavam tecnologias alternativas sustentáveis para o manejo das águas e da terra. No período em que estive na comunidade, organizaram mutirões de construção de saneamento ecológico para evitar a contaminação das águas com o esgoto e preservar os recursos hídricos.

As crianças de pé no chão corriam livres, subiam nos pés de manga carregados, recriavam o mundo a cada brincadeira. A menina Tarla, numa noite, me pediu para contar uma história e comecei a gostar da ideia. Pensei um enredo feito de lugares, eventos e pessoas reais, mas colorido com tons da imaginação, para recriar também um pouco do mundo.

Mestre Boi em vivência no encontro do rio Doce com o mar. Fonte: Regenera Rio Doce, 2018.

Então, já em outro canto das Minas Gerais, em outro trabalho na região do Alto Rio Doce, fui juntando novos retalhos nessa colcha-história. Antônio Matias Celestino, conhecido como o Mestre Boi, da guarda de congado da comunidade quilombola de Córrego do Meio, foi uma nova inspiração. Dizia que, para ele, era como se tivesse recaído um feitiço sobre o rio Doce; sentia que precisava ir cantando e tocando seu tambor até a foz, a fim de contribuir para uma espécie de “contrafeitiço”, ou seja, para a cura no rio. Travessia que ele prometeu e fez mesmo!

E foi assim que, em cada lugar, em cada encontro ou projeto que reunia os atingidos direta ou indiretamente por essa tragédia-crime, uma figura nova queria pular para dentro da história… fazer-se memória, reinventar o rio.

As benzeções e rezas pelas águas feitas por Mãe Dú e Mayô Pataxó, as cantorias do Farinhada, congados e folias no Encontro da Troca de Saberes/UFV, no encontro da Troca de Saberes/UFV; as falas de representantes dos povos indígenas Krenak, Puri, Pataxó, Guarani e Tupiniquim na Caravana Territorial do Rio Doce; e a reunião das culturas tradicionais no Encontro de Cultura Ancestral de Areal/ Regenera Rio Doce, foram trazendo elementos e unindo-se, como notas musicais, para formar a melodia do livro.

Mayô Pataxó e Mãe Dú, cantando para a terra e para as águas no evento Troca de Saberes/UFV. Fonte: Troca de Saberes/UFV, 2018.

Mãe Dú, em trabalhos de cura. Fonte: Acervo pessoal Maria do Carmo Viana. Omô de Omolú, 2019.

Mãe Dú, em trabalhos de cura. Fonte: Acervo pessoal Maria do Carmo Viana. Omô de Omolú, 2019.

Apesar de não ter convivido diretamente com o povo Krenak, destaco que eles também foram uma grande inspiração, por considerarem o rio Doce, o qual chamam de Watu, um ser sagrado para seu povo.

Foi ficando claro que a sabedoria dos povos originários e comunidades tradicionais – camponeses, quilombolas, indígenas e pescadores – tem um papel importante na cura do rio e na cura da sociedade moderna. Muitos desses povos conservam modos de vida mais respeitosos e equilibrados junto a seus ecossistemas naturais e têm muito a nos ensinar. Essa é a mensagem de Um canto para o rio: que episódios como o desastre socioambiental que devastou o rio Doce e lamentavelmente voltou a se repetir em 2019, em Brumadinho (MG), não voltem a ocorrer jamais.

Fonte: Caravana Quilombola, 2018.

Encontro de Cultura Ancestral de Areal, na foz do rio Doce. Fonte: Regenera Rio Doce, 2018.

Encontro de Cultura Ancestral de Areal. Fonte: Regenera Rio Doce, 2018.

 

Atividade com as crianças no Projeto de Diagnóstico de Nascentes em Tumiritinga. Fonte: Yasmin Amarante, 2018.

 


 

Biodiversidade e Cultura na Bacia do rio Doce

 

  • Aves 
    • Macucos
    • inhambus
    • curiangos
    • saíra-douradinha
    • Teque-teque,
    • saracura
    • sabiá-laranjeira
    • bem-te-vi
    • gavião-caboclo
    • fogo-apagou
    • maracanã
    • anu-preto
    • joão graveto
    • joão teneném
    • tico-tico
    • trinca-ferro
    • urubu-rei.
  • Peixes 
    • Dourado
    • Curimatã
    • Cascudo
    • Pacumã
    • Robalo
    • Piau
    • Carpa,
    • Lambari
    • Pintado
    • Cachara
    • Traíra
    • Corvina
    • Moreia
    • acará
    • piabanha
    • corvina
    • curimba
    • bagre-africano
    • tilápia
    • pitu.
  • Mamíferos 
    • Paca
    • capivara
    • ouriço-cacheiro
    • caxinguelê
    • lobo guará
    • raposa
    • sagui
    • sauá
    • tamanduá-mirim
    • jaguatirica
    • veado-mateiro
  • Árvores
    • Jequitibá
    • sapucaias
    • perobas do campo
    • embaúba
    • aroeira
    • angico
    • araribá
    • Pau magro
    • ingá
    • braúna

  • Povos e comunidades tradicionais

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

Um canto para o rio

Esta é a história de um rio que, como todas as águas, se une à terra para criar vida. O rio é vítima de uma grande tragédia e é totalmente contaminado. Só aqueles que ainda sabem escutar os sussurros das águas e o coração da terra podem ajudar a salvá-lo. O livro revive, de forma metafórica, o rompimento da barragem de rejeitos que atingiu o rio Doce em 2015, num enredo que inspira o amor pela natureza e mudanças de valores e atitudes, para que situações como essas não continuem se repetindo. Os personagens e cenários são inspirados em pessoas reais, comunidades tradicionais com as quais a autora teve contato em suas andanças pela Bacia do Rio Doce.

O conto pode ser considerado um recurso literário-pedagógico para os educadores trabalharem as questões ambientais com as crianças, de forma sensível e poética. Afinal, um rio de lama, destruição e morte, uma história de memórias roubadas e trajetórias interrompidas; tudo isso poderia suscitar uma reação violenta de revolta. Na história tecida pela educadora mineira Roberta Brangioni, e lindamente ilustrada por Taisa Borges, os rastros de um dos maiores e mais descabidos desastres ambientais do Brasil do século XXI revelam uma mensagem de união e esperança.

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