Presença de Henriqueta: Ana Elisa Gregori
Saudades de Henriqueta
Ana Elisa Lisboa Gregori
Em verdade, nasceu a menina na pia batismal. Recebeu o nome de Henriqueta. Desceu o Divino Espírito Santo com Sua graça santificante e por apropriação estabeleceu morada naquela criança, amando-a. A fé nos diz que essa graça é ganha por Jesus Cristo, para nós, para o ser batizado, preparação para a lumen gloriae, luz de glória. Deus entra na alma, é feita a luz. Chega a purificação, libertação do pecado original que é nossa cicatriz de nascimento, na alma. O verbo de Deus tece no espírito a Fé, a Esperança, a Caridade.
Henriqueta, em entrevista de 5 de maio de 1984 a Edla van Steen1, confirma com palavras decididas:
Apesar de extremamente sensível, tive infância normal. Minha mãe era muito imaginativa e cultivava as três virtudes teologais: fé, esperança e caridade; meu pai, muito inteligente, reunia as quatro virtudes cardeais: justiça, prudência, temperança e fortaleza.
A virtude desabrocha e cresce no hábitat natural do próprio esforço, do bom hábito adquirido e praticado.
Tomo emprestadas as imagens de um poema de Henriqueta sobre o avô e um neto para expressar o pensamento sobre a pessoa, a tia, que fez um laço harmônico de sua vida de fé em Deus, no homem, tornando-a poesia, obra, opção de vida, profissão de fé, fé em Deus, fé no homem. “Laços” é o poema, e a imagem se presta à ligação dos extremos através das veias azuis da nobreza da fé.
Laços de fita?
Veias azuis.
Laços que ligam
o norte e o sul.
Em conferência proferida em Brasília, no momento apropriado de um encontro de escritores, Henriqueta confirmou sua posição, postura definida de palavra e de vida, declarando naquelas terras de planalto a convicção que vem da Mantiqueira e para a serra volta como eco real atravessando nossos corações.
Declaração de Henriqueta: “Poesia: minha profissão de fé”3.
A escolha da profissão vem da vocação e passa a existir no trabalho bem cumprido. O ofício, o trabalho, qualquer espécie de trabalho, deve ser executado com seriedade. Consciência no exercício de viver, testemunha viva da própria vida na terra dos homens exerceu Henriqueta, pois a construção do próprio mundo é feita lado a lado, entre grandes e pequenas obras humanas, por operários, servos que somos todos, cooperando com Deus.
Menos de dois anos antes de ir ao encontro da Verdadeira Luz que ilumina todo o ser, Henriqueta respondeu, ainda na mesma entrevista a Edla van Steen, ao Jornal da Tarde4, de O Estado de S. Paulo, à seguinte pergunta: “Valeu a pena ter dedicado sua vida à literatura?”
Sem dúvida! A literatura, ou, melhor dizendo, a poesia, preencheu minha existência, abrindo-me caminho entre os seres humanos e indicando-me os caminhos de Deus. Digo poesia no mais amplo sentido de amor, entendimento, iluminação, premonição, impulso renovador, continuidade patrimonial, expectativa de que a luz venha a nascer nas trevas.
Era mês de maio de 1984. Luz e trevas. Trevas e luz. Como são misteriosos e belos os caminhos de Deus. Henriqueta encontrou no ofício da convivência poética o seu caminho. Prosseguiu com rara felicidade no encontro e na vivência até ao fim. Quantas vezes desconhecemos o nosso caminho, desencontramos, esquecidos, ignorantes de que nem sempre os caminhos de Deus são os de nossa escolha.
Às vezes não é a senda que ansiamos, porque desejamos sombra, silêncio, água fresca irreais.
Henriqueta, em Brasília, selou, com palavras e frases de convicção, o ato de cada dia de vida que era o fazer do silêncio e da sombra a sua morada.
Na casa da rua Bernardo Guimarães, em Belo Horizonte, tia Quequeta, assim chamada pelos sobrinhos, existindo, trabalhando, escrevendo.
Vulto leve, etéreo, feminino, delicado. Era alguém que necessitava muito dos cuidados da avó da menina, dona Sinhá, mãe de Henriqueta, se debruçava sobre o fogão zelando por seu alimento. Sopa de legumes, torradas, chá, tudo leve, entrando na harmonia do corpo frágil. Poeta frágil-forte.
A tia, alguém que era muito respeitada, provocava certo espanto silencioso lá dentro da criança, que foi morar com a avó por poucos anos, estudando no internato do Colégio Imaculada Conceição.
Um dia, viu um senhor, aos olhos da menina, alto, um pouco estranho, rosto grande, saindo do escritório onde a tia escrevia à máquina. Atravessou a sala, despediu-se da avó e se foi.
“Quem é ele?”
“Otto Maria Carpeaux”, respondeu a prima.
“Será professor da tia Quequeta? Então, ela também estuda?”
A menina e sua prima brincavam muito de teatro. A sobrinha não podia compreender, e na verdade nem pensava que o tempo da tia era de gente grande, precioso tempo de poeta.
“Vem, vovó, vem tia, vem todo mundo assistir teatro.”
Henriqueta se sentava, assistia. Do começo ao fim? A sobrinha não se lembra, mas para e pensa com perplexidade sobre como era esse acontecimento.
Música havia no escritório que a gente se lembra, do outro da rua Fernandes Tourinho. Que música era aquela? Uma vaga lembrança de violino tocando à noite, não se sabe se na própria casa, ou na casa do vizinho. De qualquer modo, aconteceu um clarão ao ler a entrevista da tia, tantos anos depois.
Um esclarecimento, um brilho no arco do violino dentro da noite. Henriqueta referiu-se à sua infância, talvez adolescência, contando sobre inclinações artísticas, com estas palavras: “A esse tempo, o desenho me fazia vibrar, e o desejo de tocar violino me acalentava”5.
Ah! Então aquele violino à noite poderia ser música ouvida em disco, vinda do quarto de tia Quequeta… De qualquer modo, a música erudita era presença na casa, tia Quequeta muito convivia com a música.
A sobrinha se lembra dela nitidamente noutro momento musical, estava próxima à vitrola, aparelho que naqueles dias não era chamado de equipamento de som. O disco era grande e rodava, tocava, música estranha que apenas ameaçou com o medo para a menina, que olhava e escutava atenta. Só ameaça de medo porque a tia falou em tom de estória infantil:
“Esta é a estória do pássaro de fogo. O pássaro de fogo de Stravinsky!”
Primeira vez que a sobrinha ouviu esse nome!
Muitos anos se passaram, a sobrinha cresceu e também tomou gosto por pintar. Um dia pintou o pássaro de fogo. No exato momento em que concluía o pequeno quadro, a cunhada entrou e exclamou consternada: “Stravinsky morreu!”
Guimarães Rosa disse que as pessoas não morrem, mas ficam encantadas…
Um dia, no Rio de Janeiro, tia Quequeta e a sobrinha, na casa de quem estava hospedada, foram visitar o escritor, amigo de Henriqueta, grande dentro de sua admiração, produto de preclara consciência do verdadeiro valor do autor de Grande sertão: veredas. Rosa sorriu larga alegria para Henriqueta, sorriso de mútua admiração. Respeito. A seguir, a recordação vívida e presente brotando do amigo, em palavras a Henriqueta, de certa vez que a viu vestida em vestido cor de malva numa conferência na Academia Brasileira de Letras. Lembranças.
Henriqueta contava em conversa cotidiana sobre o passado, diálogos entre as duas, que muito apreciava as conferências, os momentos literários desfrutados na Academia, naquela época distante em que morou no Rio, quando seu pai, João de Almeida Lisboa, foi deputado federal.
Morando em Belo Horizonte, Henriqueta vinha de vez em quando ao Rio, ficava em casa do irmão José Carlos, do irmão Osvaldo, da sobrinha morena. Por que morena? “Morena e Clara” é poema sobre as duas primas que brincavam de fazer teatro. Maria Antonia e Ana Elisa. “Morena e Clara” encontra-se em sua obra, O menino poeta.
Quem não conhece
Morena e Clara?
Morena miúda,
passos geométricos.
Lábios polpudos
de labareda.
Clara pernalta,
mole como água.
Doce de leite
são seus cabelos.
Ouço Morena:
música brusca
de frutas verdes
e arranha-céus.
Clara desliza
(câmera lenta)
pelos teclados
do polo antártico
Serão amigas
Morena e Clara?6…
A finalidade é depor sobre alguém que com sua sensibilidade, intuição, definiu tão claramente o ser que, tendo despertado para a poesia, pela perda prematura da mãe, obteve estímulo da parte de Henriqueta no futuro. O trabalho objetivo chegou para a sobrinha já casada e com filhos, que correu com ansiedade atrás da tia, enviando-lhe seus originais escritos. Não sabia se eram bons aqueles poemas. Chegou telegrama de Belo Horizonte para o Rio. “Recebi lindos poemas, parabéns, logo escreverei. Henriqueta.” Aconteceu em 1962.
Em carta de 5 de agosto de 1963, Henriqueta datilografa:
Respondo sem demora à sua carta de 30. Amanhã recomeçarão as aulas e já me pertencerei menos. [Prossegue comentando construtivamente sobre os poemas. Incentiva. A carta continua.] Prossiga, estude, leia muita poesia diferente, consulte sempre o dicionário, cofre de preciosas revelações; e ouça, principalmente, sua voz interior.
Tia e poeta, orientava, indicava livros, um deles que criou e abriu horizontes, O significado da arte de Herbert Read. O livro Convívio poético era para a sobrinha uma aula constante, assim como os poemas de Henriqueta. Tia e sobrinha juntas, sobre a mesa de jantar, corrigiram os originais da segunda. Creio que o incentivo que partia da dedicação de Henriqueta era múltiplo a tantos que a procuravam, todos partilhando ansiedade de conviver com o inefável através de tão alto ensino e apoio.
Idas e vindas, passado, presente, futuro, a memória pervaga sem contar minutos.
De novo a sobrinha se vê menina sonhando de olhos abertos porque aprendeu, no poema do poeta, que as madrugadas possuem cor. Madrugada azul, rosa, verde, amarela, branca.
“As madrugadas” do menino poeta. Ciranda de valores, tons, música, muita cor nos poemas de tia Quequeta. Um dia, já adolescente, a sobrinha descobriu no chalé, na parede da casa de Lambari, solar da família Lisboa, um quadro em formato longo como o dos artistas orientais, onde viu uma tímida corça pintada. Quem o pintou? Henriqueta, respondeu alguém. “Azul profundo” é o título de uma de suas obras. Ouro, sangue, seiva, verdes, malva, rosas, azuis, arco-íris constroem a meta para chegar ao Alvo humano7 .
Alvo humano é a poesia, o livro que se abre e lê.
Reconstrução universal na arte de Henriqueta respondendo sempre à repórter em seu tempo:
Influência de autores estrangeiros não sei se as recolhi, embora sinta predileção antiga e renovada por simbolistas franceses, românticos ingleses, místicos espanhóis, medievais portugueses, Dante, Leopardi, Holderlin, Rilke, Tagore, sem falar nos mais modernos como Ungaretti e Jorge Guillén, com os quais sinto muita afinidade. Também me foram proveitosas as reflexões de Santo Agostinho, Schiller, Emerson, Alain.8
A presença viva de Henriqueta Lisboa no pensamento, no coração é a poesia mesma. Pura. A visão para quem a vê é a sacerdotisa em permanente liturgia, fidelidade, amor objetivo. Amor que eleva esta imagem, “além da imagem”, acima de si mesma.
Henriqueta escreveu em Convívio poético:
Existe, em sentido essencial, a poesia comum ao gênero humano, aura de inspiração que o eleva acima de si próprio: participando virtualmente das atividades e atitudes compatíveis com a nobreza, ela preside a todos os mistérios do universo e é, como a vida mesma, indefinível. A essa, precisamente, denominava Novalis “a flor azul”, símbolo representativo da nostalgia do homem pelo inexistente, dos seus anseios de perfeição e sobrenatural.9
Ao reler essas palavras não é possível travar o pensamento, que anseia por dar aqui um laço entre esses conceitos ao estado espiritual de Santo Agostinho. Palavras do grande Doutor da Igreja a Deus:
Todavia, esse homem, particulazinha da Criação, deseja louvar-Vos. Vós o incitais a que se deleite nos vossos louvores, porque nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós.10
Pensemos sobre caminhos e caminhadas paralelas.
Válida é a inquietação do homem, quando não coloca seu coração no tesouro que a traça come e a ferrugem consome. Válida é a arte, na gruta da alma humana, onde o gesto primitivo sobre a rocha da caverna, no paraíso, desenhou com linha e cor, para se transformar, reverberando o eco da palavra, do Verbo dentro de nós mesmos.
Deus ordenou luz ao espírito da menina Henriqueta, a luz foi feita em lanterna de virgem prudente, poesia que a ela e a nós indica o caminho de Deus, com Deus, para Deus. Ofício.
1 “Henriqueta unida aos homens e a Deus. Pela poesia”., Entrevista a Edla van Steen, Jornal da Tarde, O Estado de S. Paulo, Cadernos de Programas e Leituras, 5 maio 1984, p. 4.
2 “Laços”, O menino poeta. Rio de Janeiro: Bedeschi, 1943.
3 Vivência poética: ensaios. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1979.
4 Ibib.
5 Ibid.
6 “Morena e Clara”, O menino poeta. Rio de Janeiro: Bedeschi, 1943.
7 O alvo humano. São Paulo: 1973.
8 Ibid.
9 Convívio poético. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Educação, 1955.
10 Confissões de Santo Agostinho. Porto: 1984.
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