Presença de Henriqueta: Donaldo Schüller - Editora Peirópolis

Presença de Henriqueta: Donaldo Schüller

O poder silencioso
Donaldo Schüller

Primeiro foram as palavras concretas, as que tinham carne, sangue e sexo. Nasciam, casavam e geravam. O Caos gerou a Noite e gerou Érebo, a escuridão mais negra que a Noite. Da Noite nasceu a Claridade do dia e nasceu o Éter, claridade mais clara que a Claridade do dia. As palavras vinham das musas, sábias, divinas, sempre vivas, detentoras da linguagem toda. Com as palavras das musas penetrava-se nos abismos mais profundos da psique e do universo. Com as palavras das musas arrebatavam-se os seres do Caos, criavam-se poemas, abarcava-se o mundo. Onde o limite entre as palavras e as coisas, entre a sintaxe verbal e os elos que ligam os seres, entre o ritmo dos versos e o movimento das estrelas? A celebração do canto mantinha aberto o caminho das sombras à luz.

Vieram os filósofos, e foi deles o esforço de dessexuar as palavras. Em vez de apontarem o Oceano ou a Terra como princípio da infindável árvore genealógica que irmanava tudo o que vinha à luz, privilegiaram palavras neutras, palavras sem compromisso com a divisão dos sexos. Neutro é to hydor, a água primordial do primeiro filósofo, Tales de Mileto; neutro é to apeiron, o indeterminado, o elemento com que Anaximandro aprofunda o pensamento de seu antecessor; neutro é to on, o ser que no sistema de Parmênides se aloja único e indivisível acima de todos os corpos percebidos pelos sentidos. E é com um termo neutro, to eidos, que Platão designa cada uma das essências imitadas pelos entes da nossa experiência. O empenho dos filósofos investido na dessexualização das palavras pactuava com o esforço de arrebatar o universo ao domínio dos deuses para torná-lo acessível às luzes da observação dos homens.

Palavras neutras ou neutralizadas, palavras em que no gênero se esquece o sexo, degradaram-se a meros veículos de comunicação, renderam-se dóceis aos condutores de homens, que as usam para transmitir ordens, para com a frieza austera fixar as leis que governam os esta de palavras de objetiva neutralidade sustentam fórmulas abstratas nos tratados científicos.

Henriqueta Lisboa, voltando a trilhar o caminho que leva às origens, ressexualiza as palavras. Na obra de Henriqueta, poema se faz carne e substantivos ganham cor, forma, febre e garbo para em pétalas comporem a rosa plena que desde o núcleo congrega tudo o que se pode conceber. Das forjas de Henriqueta, as palavras saem versáteis, candentes; corre sangue em suas veias de brasa. Potentes, elas abalam o fundamento de construções sólidas. Devolvidas à natureza, elas pintam de verde as várzeas. A palavra rosa tem cor, na palavra brisa tocam-se cristais, sons de flauta animam a palavra fama, raiva ruge na palavra guerra, a palavra morte é um ermo corredor sem luz.

Atravessamos as páginas de Henriqueta como quem anda por caminhos ladeados de corpos compactos, cálidos, vivos. E revemos o poder dos vates que povoaram com seres vigorosos as regiões celestes, [a] superfície da terra e os abismos em que não penetra a luz do sol.

Equivocados andaríamos se buscássemos eloquência nos versos de Henriqueta. O poder sabe também vigorar silencioso. A eloquência ilumina a superfície, encanta com o esplendor, arrebata o aplauso das multidões, empenha-se na adesão dos outros, ambiciona a publicidade. A poesia de Henriqueta Lisboa, avessa a efeitos fulgurantes, a rituais de incenso e púrpura, a aclamações festivas, a canções retumbantes, à expansão dos gestos largos, inclina-se ao silêncio das celas monásticas, ao aconchego das penumbras, à delicadeza dos que se amam.

A paz, assim inaugurada, tão próxima do que é eterno, abole tempo e espaço, exila a esperança. O que esperar se o lugar do pleno é aqui e agora? Espera-se o que não se tem, o que seduz na distância. A esperança proclama a pobreza de quem espera. O que os esperançosos buscam longe se oferece espontaneamente aos que vivem em tranquila desesperança, os que encontram o caminho pleno no sorriso da criança, no germinar da flor, no arrulho das aves, no sussurro dos regatos.

Com os olhos pousados no usufruir do instante pleno, Henriqueta evoca Narciso; não o Narciso inconsolavelmente abismado no espelho das águas, o Narciso ferido com a perda irremediável de si mesmo. O Narciso de Henriqueta é mais antigo. Este contempla-se num espelho subtraído ao que se move e ao que passa, espelho sem nódoas, sem alterações provocadas pela indecisa incidência da sombra e da luz, sem o engodo de dedos a esconderem o último dado. O espelho puro em que se contempla o Narciso de Henriqueta não sofre a vertigem luciferina que precipitou em sofrimentos sem fim o anjo envaidecido de sua grandeza. O espelho em que se contempla o Narciso de Henriqueta não esconde lágrimas, é o espelho essencial, nunca degradado à precariedade dos seres que perecem. Sem espessura nem dimensões, nele está gravada a imagem segura e nítida, numa aurora distante, anterior à criação, espelho em que, narcisos, todos nos contemplamos antes de termos nascido. O narcisismo distinguido em “O espelho” fala da unidade primeira, anterior à oposição sujeito–objeto, anterior ao corte que nos separou do corpo da mãe, anterior ao doloroso espaço que afasta um corpo de outro corpo, unidade resguardada dos triunfos e desastres de que se embebedam os que agora se apresentam a inseguras plateias.

A meta não é, portanto, o diálogo que instaura entre um e outro falante infranqueáveis cercas de palavras. Nos versos de Henriqueta busca-se o solilóquio que se retrai ao silêncio primeiro, em que som nenhum fere o que ainda não se distanciou de si mesmo, do que ainda é um com a totalidade.

O ídolo, por se levantar em questionável solidez antes da meta, é objeto de vidro, é ser precário, ainda que robusto se mostre, e a ídolos se reduzem todas as seduções ao longo do caminho. Silêncio é a palavra que liberta, silêncio é o punhal que corta as amarras de mãos e pés presos à inclemência da rocha no deserto. De silêncio se tecem as palavras do Amado nas confidências do crepúsculo, nos segredos da lágrima.

Porque a verdade se abriga no silêncio, o poeta se defronta com um segredo que não sabe traduzir, embora todas as línguas lhe sejam familiares. Como poderia descer à mobilidade do ritmo o que é uno e imutável? Mentira são, portanto, todas as realidades ainda que sejam científicas. O poeta não é suficientemente forte para suportar a grande revelação. Fala do que lhe é estranho, do que, ao se revelar, teve a duração de um relâmpago. O poeta fala com lábios ressequidos, com olhos que já não veem a luz do céu. O Anjo, metáfora da totalidade indivisa, só se apreende na fuga, eternamente ausente de todas as aparições, o que torna acre a parábola da vida. O Anjo ou o Amigo, sempre longe, e tão perto como Cristo no caminho a Emaús.

A verdade está no silêncio, no sono das crianças mais do que no canto delas; e o silêncio é o das origens, anterior a todas as divisões, anterior a todas as feridas, a todos os sonhos, no fecundo sono original.

Não há mistério na morte, não há mistério no silêncio; o mistério está na vida, tanto nas afirmações como na abstinência, na malícia de possíveis revelações, no suborno das palavras silenciosas. As palavras são misteriosas por sua própria natureza, ocultam o que desejam revelar; quando dizem, o não dito as excede; quando calam, deixam suspensa a eventualidade de algum sentido. É tão simples a morte! É tão ela mesma confrontada, no silêncio, com as palavras de múltiplos reflexos, sinais equívocos de esquivas mensagens, estilhaços da unidade perdida. A morte restaura a verdade na unidade, silenciosa e plena, disposta além do que inapelavelmente se divide. E ela existe para os vivos com vagares, com propostas e enigmas de fera na jaula. A sabedoria brilha na jovialidade das cās, quando, ausentes os grandes discursos, o diálogo se estabelece com o passarinho na gaiola. O insignificante, o diminuto zombam do grandioso, armados da força que garantiu a vitória do pequeno Davi sobre o gigantesco Golias.

O que resta? Restam as perguntas feitas à terra no maior sigilo, de respiração contida, e, ouvidos os segredos, entre lírios, a recompensa do sono tranquilo. Resta o contato direto com as coisas, demitida a mediação das palavras, as mensagens lidas em lábios calados, a maturidade percebida na polpa dos dedos.

Na falta de arroubos, de bruscas interrupções, os ritmos de Henriqueta convidam ao repouso, ao silêncio, ao sono em que todas as fronteiras se apagam, em que a unidade indivisa se restaura, o sono, prenúncio da verdade guardada na morte.

Do Ocidente é a palavra da ação, das grandes empresas, dos grandes negócios, dos grandes cometimentos bélicos, das grandes navegações. O Ocidente desponta nos másculos versos de Homero. Ocidental é o espaço do ruído, das manchetes, das aglomerações turbulentas, das revoluções e das passeatas, das surpreendentes invenções. O Ocidente desdobra-se épico em toda a sua história. A poesia de Henriqueta Lisboa, corajosamente antiépica, recusa a monumentalidade ocidental. Agradam-lhe mais as culturas silenciosas, milenarmente concentradas em si mesmas, sabiamente tranquilas, serenamente satisfeitas, civilizações em que o silêncio vale mais que a palavra. A poesia de Henriqueta é mansamente revolucionária, desafio à civilização que se desenvolve à luz do dia: as grandes catedrais, os elevados edifícios, os espetáculos vistosos. Henriqueta busca os ambientes fechados, a solidão monástica, a sombra que veda a indiscrição do olhar. Aqui se abre o caminho à origem indivisa, à unidade não ferida pela lâmina da palavra, ao pulsar uníssono com o universo, à vida gerada no silêncio.

Não requer esforço ver nesse projeto semelhanças com a prosa de Clarice Lispector, igualmente seduzida pela unidade anterior às divisões, anelante pela epifania do ser em meio à dispersão dos entes, ocupada na fabricação de palavras vivas, refratárias à frieza dos conceitos.

Se estivermos interessados em perquirir a tipologia dos discursos, estaremos autorizados a declarar masculino o discurso épico e feminino o discurso concentrado em si mesmo, voltado à unidade sem fendas, ao silêncio, à quieta gestação. Poderemos declará-los ambos narcisistas porque do narcisismo nada se evade. Observe-se, entretanto, a diferença. Secundário, para repetir a terminologia de Freud, é o narcisismo masculino. E do homem a imagem refratada nos espelhos, a imagem que se busca no reconhecimento dos outros, no aplauso dos outros, e se realiza no domínio, na ampliação do espaço, na solidez dos monumentos, na imponência dos palácios, no poderio das armas, na eloquência dos discursos, na organização dos povos. Primário é o narcisismo feminino, preocupado em garantir a unidade e integridade da fonte da vida, atento ao vigor das origens, ao poder que germina em regiões profundas, esquecido por aqueles que afanosa e inutilmente se consomem na construção das frágeis unidades de superfície. No entrecruzamento do discurso masculino e feminino, em harmonias e desavenças, vemos a articulação do discurso da humanidade.

Atentos a Kierkegaard, compreendemos também como feminina a religiosa atitude de entrega, tão persistente nos versos de Henriqueta. Em oposição a ela, situa-se a religiosidade masculina, intelectualizada, sacrílega na ousadia de submeter até o sagrado ao rigor dos conceitos. No conúbio da ousadia e da entrega teremos outra revelação do discurso da humanidade.

O feminino encontra-se ainda na atenção ao efêmero, na eternidade que sorri no desabrochar da flor, da docevolúpia do instante que passa. Masculina é a fruição protelada, sonhadoramente projetada para um futuro infinitamente aberto, fonte da esperança, do progresso, da inquietação, da dor. Entre a glória do instante pleno e a frustração do bem adiado, nós todos discorremos.

O recolhimento de Henriqueta é também oferta a ligações múltiplas, universais. A rosa é bem o símbolo do ser que, embora concentrado em si, se desdobra e se abre em camadas que constroem os horizontes sem limite do universo. Redefinir os termos do dicionário de Aurélio é devolver as palavras à oficina, é redimi-las da instrumentalidade a que se degradaram, para devolvê-las vivas, únicas, poetizadas. Não foi esse desde sempre o apelo que insistentemente encaminhamos aos poetas? Não foi deles que solicitamos a revitalização das palavras para não sermos aniquilados pela solidão a que os signos reduzidos a condutos de necessidades e ordens nos confinam? Não lhes pedimos concretitudes para a vitória sobre as distâncias que se abriram em torno de nós e nos feriram o corpo? O dicionário reescrito por Henriqueta demite as ausências que os léxicos impõem. Recriada, a palavra “alvíssaras” se converte numa manhã de abril em carta e vida, esvoaçar de cortina alvíssima. A palavra, desmaterializada pelo conceito, recobra quenturas de sol, movimento e cor. Infundindo vida no corpo inerte, Henriqueta provoca o milagre da ressurreição, não de uma só, de ressurreições múltiplas, e voltamos a conviver com seres vivos num mundo torturado pela posse, pelo mando, pela ganância. Revitalizadas, não precisamos fugir das palavras para confraternizar com os seres. O vocabulário que nos humanizou volta a nos humanizar renovado pela poesia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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