Entrevista com Betty Mindlin, a autora de “Berenice, a avó de si mesma”
Devemos logo dizer aos leitores e às leitoras que esta entrevista é um pouco diferente das outras. Provocamos Betty com algumas perguntas (isso aconteceu como sempre), mas desta vez, a entrevistada nos devolveu um texto único, em que juntou todas as respostas às nossas perguntas. Achamos por bem manter esse texto único, muito bem amarrado, muito bem costurado, assim como a boneca que deu nome ao livro. A seguir, as perguntas, e depois, o texto-resposta de Betty. Boa leitura!
Peirópolis:
1. A jornada de Berenice, criada pelas mãos de Nhãnhã, entrelaça-se à história de uma menina que cresceu cercada de livros, afeto e imaginação. Como foi, para você, Betty, transformar lembranças pessoais em narrativa literária? Que caminhos a memória percorreu até se tornar invenção?
2. Ao trazer os livros de modo tão vivo, como “sangue que corre nas veias”, a leitura de Berenice nos faz pensar: em que medida nós podemos nos constituir do que lemos? Ou das histórias que ouvimos?
3. Como bem fazem as obras biográficas, a história individual e a coletiva aparecem entretecidas. Berenice fala de um tempo, de um país e de uma cidade que mudaram muito, assim como a própria personagem Nhãnhã. Berenice é o fio comum, que permanece. De que forma vocês veem o diálogo deste livro com as crianças e jovens leitores de hoje?
4. Durante a edição de Berenice, os aspectos biográficos de Betty e de sua família foram ganhando cada vez mais espaço, expandindo-se da narrativa literária até os paratextos, que trazem a história de Guita e de José, muitas imagens de livros e o projeto da Biblioteca Brasiliana. Como foi esse processo, e de que forma Diana e Lucia trouxeram novas camadas à narrativa e à visualidade?
5. Como foi pensado o projeto visual do livro de modo a expressar a mistura de lembrança e invenção, aspecto marcante em Berenice?
6. Betty, sua trajetória como antropóloga e escritora é marcada pela escuta das vozes indígenas e pela valorização das narrativas orais. Há ecos dessa experiência no modo como você reconstrói sua própria história em Berenice?
7. Que papel você acredita que a literatura pode ter hoje na transmissão das heranças afetivas entre pais e filhos, avós e netos, professores e alunos?
Betty Mindlin:
Berenice brotou, de alguma caverna misteriosa de quem sou. Quando perguntávamos aos grandes amigos Paiter Suruí, nascidos na floresta, antes de serem perturbados por invasores, “quem criou a humanidade?”, nomeavam quatro seres primordiais. E quem os criou? “Ah, brotaram de si mesmos”, era a resposta. Berenice também.
Eu poderia puxar vários fios. Depois que virei avó, queria contar à neta e aos netos quem eram os seus bisavós, como fui feliz em uma casa com bichos, plantas, ruas de terra, livros, música e contação de histórias. Meu pai chegou a conhecer minha neta Olivia, com cerca de 2 anos, ela brincou no mesmo jardim que eu, mas não lembra. Juntei muitos pequenos textos de memória, verdadeiros, mandei a toda a família, pedindo acréscimos, e não funcionaram. Fui inventando. Guardei Berenice em uma gaveta por décadas, ela mesma em algodão, não o livro. Quando Ana Carolina Carvalho e Renata Farhat Borges publicaram, fui procurar a bonequinha, e sumiu! As editoras, com a varinha de condão da Peirópolis, a viraram no que passei a ser! São coautoras, deram uma outra personalidade ao enredo. Para mim, era um jeito de inserir a geração mais nova, abolir a distância de idades, para sentirem o perfume de tantas árvores de flores e canteiros. Eu queria na história um princípio norteador da minha vida, o da diversidade, o antirracismo, e assim não queria dar uma pele concreta à bonequinha – ela seria todas. As ilustradoras desejavam fotos de família, eu quis populações de bonequinhas. Renata e Ana Carolina insistiram na figura de meus pais, o bibliófilo erudito e colecionador de raridades, e de minha mãe restauradora, foi quase exigência a presença da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, doada por eles à USP. Resisti, o livro era eu/boneca, não a Biblioteca na USP, BBM, com a qual o texto iria além da família personagem, mas cedi e foi ótimo, deu um outro alcance a este arremedo de ficção rudimentar, escrita aprendiz. Diana e Lucia, depois de muitas concessões, adotaram os meus desejos de imagens.
O livrinho e a lembrança tornaram-se estantes com livros lidos há pouco (e há muito), foram a matéria para ilustrações e capa. Difícil escolher quais os eleitos visíveis, lombadas e capas, deu muito prazer e foi uma metamorfose em mim e na pequena obra publicada. Berenice e eu nascemos de vocês quatro, Diana, Lucia, Renata e Ana Carolina. Penso que o projeto gráfico, bem como o editorial e revisão, as ilustrações, a capa, são o melhor de Berenice, a avó de si mesma.
Berenice tem um duplo de mesmo nome, só que é uma menina, não uma boneca, nascida 9 meses antes. É a personagem central do meu livro mais curto Viagem à Baía da Onças, publicado pela Caixote com ilustrações de Rita Carelli. Mais fictício, e com um pouco mais de conteúdo indígena, tem o desejo realizado de eu ter a mesma idade de meus netos, misturar-me a eles. É uma história inventada por mim aos 10 anos, e o enredo nos leva, a turminha toda, a um povo indígena. O que me faz pensar na pergunta sobre leitores e leitoras.
Nada sei sobre quem lê, nem me ocorre enquanto escrevo. É verdade que saí de uma casa na qual livros eram deuses. Mas meu trabalho e descoberta marcantes foram a oralidade entre povos de cerca de quinze línguas, alguns em contato com a sociedade industrial há pouco, sem falar português. Lá eu vivia em plena ficção, e nem pensava em ler. O que ouvia era equivalente e ainda mais expressivo que as melhores obras literárias. Quis transmitir com as vozes autorais a beleza que criavam, eu a única, a primeira não indígena a ouvir. Quando era criança, meus pais nos contavam e liam em voz alta, traduzindo de muitas línguas. Em casa de meu avô, uma cozinheira velha contava contos tradicionais, ela era uma verdadeira Câmara Cascudo, autor que eu li depois, assim como contos de fada e mitologia grega. Gosto de histórias contadas, cantadas, sempre as busco. Nas minhas estantes e nas fotos de Berenice, constam alguns escritores máximos que se iniciaram com tradição oral, como Tolstoi, Calvino, Guimarães Rosa, Arguedas e tantos outros, bem como biografias de mulheres.
Creio que o gosto dos leitores depende da época e da sociedade, tão diferente hoje. Ana Luisa Escorel fez conferências e escreveu sobre suas leituras de menina e adulta, e as minhas eram em grande parte as mesmas! Eu escrevi sobre minhas leituras de menina, publiquei só um trecho. E como as editoras decidem publicar, como lêem? Por quê?
Li ontem o livro de Gabriela Romeu, Sei tuas frases de cor, publicado pela Peirópolis em 2025. A poesia do livro inundou os olhos de Renata e Ana Carolina, e ao passar ao meu, elas o molharam com a lindeza que trouxeram dela e o aceitaram. Temos mesmo algo em comum, embora Gabriela com uma qualidade que não atinjo. Que coincidência sincrônica o nome de Henriqueta em ambos, sem que eu tivesse qualquer notícia ao escrever! Bom presságio.
Nem sempre os nossos livros preferidos, entre os que escrevemos, foram os mais lidos e vendidos. O mercado não prioriza — ou nem sempre — a arte da linguagem. Assim mesmo, a cultura ainda é uma esfera privilegiada de valores e princípios. Duras são outras, mercantis. Como crítica do sistema econômico atual, penso que os setores com os maiores ganhos são os que desencadeiam maior miséria e desigualdade, como mineração, petróleo, construtoras, exploração da foz do Amazonas, o Ferrogrão, as hidrelétricas e outros empreendimentos ditos desenvolvimentistas.
Nenhum dos meus livros é um sucesso de venda, mas sempre um nascimento de conversas, debates, até críticas. E que prazer quando nos sentimos transmitindo, com compreensão exata! Há um mês ouvi uma curta fala que me deixou nas nuvens. Foi em um debate no Instituto Moreira Salles sobre a exposição dos fotógrafos Paiter Suruí, e acabei falando bastante do meu livro Diários da floresta, publicado pela Terceiro Nome em 2006. São meus diários de campo entre os Paiter Suruí de 1978 a 1983, o deslumbramento com um modo de vida social e economia, bem mais igualitário e cósmico que o nosso. O diretor artístico do IMS, João Fernandes, um erudito português desejoso de conhecer a fundo o Brasil, correspondeu exatamente ao que eu esperava ao escrever: em um tempo em que comunicações eram difíceis, sem internet ou telefone, levar os leitores longínquos a entrarem comigo em um mundo que poucos tinham então a oportunidade de compartilhar. Além do mais, fez uma observação que nunca ouvi de ninguém: que minha subjetividade estava sempre presente, quando eu escrevia sobre o conjunto da minha vivência e aprendizado com os queridos Paiter. Outro leitor surpresa este ano foi Carlos Lisboa Travassos, geógrafo e indigenista ousado, dedicado aos povos indígenas isolados (refugiados). Preenchendo agora o ofício de Bruno Pereira, assassinado em 2022. Ganhou da mãe os Diários da floresta aos doze anos, adorou; adulto, reconheceu em povos atuais, ainda em início de contato, o clima mágico e coletivo.
Mas cá estou eu a falar de outros livros, percebo muxoxos desaprovadores de Berenice. É que os livros não são solitários ou individualistas, vivem aos montes, coral de falas criando tradições.
Em cada livro, há sempre pelo menos um leitor ou leitora que faz valer a pena a labuta de publicar. Gostaria muito que Berenice, a avó de si mesma, neste ano ou bem depois, não se limitasse a si própria, nem às minhas palavras-amarras, e atingisse filhos, netos, ativistas, estudantes, escolas, alunos de qualquer idade, artistas, amantes de livros escritos e orais, perpetuando o que dá sentido à vida.
Betty Mindlin, 12 de outubro de 2025
Sobre o livro
Berenice, a avó de si mesma
Betty Mindlin
Imagens por Diana Mindlin e Lúcia M Loeb
17.5 x 22 cm cm • 116 páginas • 4 cores
ISBN 978-65-5931-400-3
Betty cresceu numa casa em que as paredes eram forradas de livros. Entre muitas histórias e personagens, ela criou Berenice, boneca feita de tecido de chita, recheada de algodão. Companheira inseparável, filha inventada, amiga feita à mão, Berenice atravessa as lembranças da autora como fio sensível que une o real ao imaginado. Costurando as memórias de uma infância cercada de afeto e de literatura, Betty nos convida a habitar os cenários de seu passado e a descobrir como os livros lidos, ouvidos e lembrados podem nos acompanhar por toda a vida, abrindo caminhos e dando novos sentidos à existência. Assim, Berenice é um tributo à presença da literatura na infância e um convite ao diálogo entre gerações de leitores.
Sobre a autora
Betty Mindlin cresceu entre livros. Seu pai, José Mindlin, colecionava raridades desde os 12 anos, com apoio da mãe, Guita, especialista em encadernação. A Biblioteca Brasiliana, que invadiu as paredes da casa, foi doada à USP em 2006 e inaugurada em 2013. Betty herdou o gosto pela leitura e o desejo de mudar o mundo. Estudou economia na USP, como os pais e irmãos, mas mudou de rumo: preferiu ouvir as palavras cantadas e faladas dos povos indígenas.
Guiada por Carmen Junqueira, foi à Amazônia em 1978 e tornou-se aliada dos Paiter Suruí e de muitos outros povos. Gravou suas vozes em línguas originais e os reconheceu como autores literários, ao publicar livros em coautoria, como Vozes da origem, Tuparis e tarupás, Couro dos espíritos e Moqueca de maridos. Como autora solo, escreveu Diários da floresta, O ventre emplumado, Crônicas despidas e vestidas, entre outros. Suas obras transitam entre memória, oralidade e literatura, sempre conectando os saberes dos povos originários às letras.
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