Entrevista com Tião Rocha
Mais que um livro, Topa? é um convite — um chamado provocador à ação, à escuta e à invenção de novos caminhos para a educação. Com a força de quem há mais de quatro décadas atua como educador popular e fundador do CPCD (Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento), Tião Rocha compartilha nesta obra as experiências, perguntas e aprendizados acumulados ao longo de sua trajetória, sempre guiado pelo desejo de transformar o que ainda não foi feito. Inspirado nos princípios freirianos, o autor nos desafia a sair da caixa, a olhar para o “lado cheio do copo” e a construir, de forma coletiva, uma educação viva, ousada e comprometida com a equidade e a justiça social.
Na entrevista a seguir, concedida em 3 de maio de 2025, Tião aprofunda essas ideias e compartilha histórias que inspiram o fazer educativo como atitude transformadora. Boa leitura!
Peirópolis: Tião, ao longo de mais de quarenta anos de atuação pelo CPCD, você convocou muitas pessoas a construir espaços de aprendizagem. O que o motivou a transformar essas vivências em um livro agora, neste momento?
Tião Rocha: Chega uma hora na vida da gente que nos perguntamos: onde estamos? Valeu a pena? O que aprendemos? E por aí vai… Quando o CPCD – Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento foi chegando perto dos 40 anos, essas perguntas ficaram mais fortes. O momento era mais que oportuno, afinal 40 anos não são 40 dias. Contar e compartilhar as vivências e experiências mais marcantes e outras perguntas, ao longo deste tempo, passou a ser interesse de muitas pessoas com as quais convivi e que compartilham nossos ideais. Por que você não transforma essas aprendizagens num livro? Resolvi! O livro é resultado disso.
P: O título do livro nos provoca: Topa? — é como um chamado à ação. Para você, o que é esse “não feito” que ainda nos espera? E por que ele é tão essencial para a educação?
TR: Eu sempre fui movido a perguntas. Não quaisquer perguntas, mas aquelas que me tiram do lugar, causam uma inquietude e uma vontade de ir atrás das respostas, em busca do não sabido. Boas encrencas pelas quais vale a pena viver. Este sempre foi o meu jeito de aprender. Sou curioso e teimoso!
Percebi que em todas as minhas aulas, palestras, formações – seja de educadores populares, agentes de desenvolvimento comunitário, jovens, professores e público em geral – ao final, sempre concluo com uma provocação, um estímulo, um desafio: “topa?”.
E quando faço esta provocação, quase uma convocação, é para que todos saiam do seu lugar e da caixa em que estão. Para que todos e todas ousem fazer tudo aquilo que ainda precisa (e pode) ser feito, principalmente no campo educacional para zerar os déficits educacionais que ainda temos: para que não fique nenhuma criança de fora, para trás ou perdida. Nenhuma a menos, deve ser sempre a meta.
Não adianta ter uma escola que só se repete e que vive ensimesmada, não adianta mais fazer “mais do mesmo”. Continuamos reformistas ou queremos ser transformadores? Precisamos que todas e todos os professores e educadores se movam e ousem construir caminhos e jeitos novos e inovadores de educar todas as crianças e jovens, sem exceção. Por isso o “topa?”
Temos no dialeto do CPCD uma expressão que denominamos de “MDIs”: “de quantas maneiras diferentes e inovadoras nós podemos:…?”…aí colocamos a encrenca ou o desafio… é um jeito de nos desafiar neste sentido de inovar no dia a dia e estar em movimento (para fora da caixa, sempre).
P: A perspectiva freiriana permeia toda a sua prática e também o livro. Como você acredita que Paulo Freire estaria olhando para os nossos desafios atuais em educação comunitária e popular?
TR: A “escola debaixo do pé de manga” ou “Sementinha”, primeiro projeto prático nosso do CPCD, surgiu a partir de uma lista de “não objetivos educacionais”. Foi deste autopoliciamento que começamos há mais de 40 anos: para não cair na vala e reproduzir uma escola que não educa mas apenas escolariza, classifica, exclui, uniformiza, seleciona e perde criança.
Algum tempo depois, com muitos erros e acertos acumulados como aprendizados, percebemos que poderíamos dar um salto e sair dos “não objetivos” e construir os nossos “objetivos”.
(Todo mundo sabe como construir um objetivo, né. É simples. Basta colocar um verbo no infinitivo no início da frase, e pronto. O resto você “enche de linguiça”…)
Mas nós tínhamos um compromisso ético, não poderíamos criar um objetivo bonito, mas que ficasse só no enunciado, como a maioria. Tínhamos que tomar um verbo que fosse conjugado no
presente! Daí criamos o objetivo que nos orienta e nos determina: o verbo “paulofreirar (eu paulofreire, tu paulofreiras, ele/ela paulofreira, nós paulofreiramos, vós paulofreirais, eles/elas paulofreiram)
Este verbo não tem passado ou futuro, só existe no presente. Paulofreiragem para nós significa estar no dia-a-dia de nosso trabalho e de nossa vida. E não é método ou fórmula, mas tudo aquilo que os princípios e valores freirianos nos legaram: respeito às diferenças, à liberdade, à equidade, à justiça social, e ação pelo fim da opressão e dos oprimidos, o
esperançar, a capacidade/necessidade de aprender o outro, o valor da cultura, do exercício da democracia… sair da pedagogia do oprimido, passar pela pedagogia da esperança e chegar à pedagogia da autonomia e da solidariedade.
Paulo Freire deve estar junto de Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira, Florestan Fernandes e Rubem Alves, todos eles nos espiando e repletos de generosidade nos enviando mais estímulos e mais provocações para não esmorecermos e continuarmos, como diria Guimarães Rosa, “dando batalha”, pois vale a pena, enquanto houver uma única criança sem todas as oportunidades de ser educada neste país!
P: Ao longo do livro, você reforça que educar não é (apenas) um ato escolar, mas uma postura no mundo. Pode nos contar um momento marcante em que essa visão se concretizou de forma transformadora numa comunidade?
TR: Aprendemos que “educação” e “escolarização” são coisas diferentes. A primeira é fim. A segunda é meio. E os meios devem estar à serviço dos fins. Podemos fazer educação em qualquer lugar, até debaixo do pé de manga, como fizemos, mas é impossível fazer boa educação sem bons educadores. Educação é algo que só acontece no plural. É uma equação onde 1 + 1 = 3.
Já a escola, esta deveria ser singular na vida de cada criança e jovem. Um lugar privilegiado para fazer acontecer a pluralidade das aprendizagens.
Um momento marcante foi a convivência com os jovens alunos e alunas da Casa Familiar Rural Padre Josino Tavares, lá em Buriticupu / Bom Jesus das Selvas, no Maranhão, em 2014.
Setenta (70) jovens viviam nesta escola. Quinze (15) dias na escola, quinze (15) em casa, segundo a “pedagogia da alternância”. Esta escola era um lixo, literalmente, sob todos os aspectos. Deveria ser fechada pela saúde pública, se houvesse. Ali não se produzia, nem se aprendia nada. Depois de uma semana ali, minha sugestão era de que todos fossem embora, enquanto fosse tempo. Mas esta não era a melhor ideia, porque havia mais de duzentos (200) jovens na região esperando uma chance de ali estar para cursar o 2º Grau.
Então propus para eles: “Vocês topam plantar 10 mil árvores?”
Eles curiosos, perguntavam: “o que você quer fazer?”.
“Plantar 10 mil árvores em Bom Jesus da Selva, mas em 10 minutos! Topam?” respondi. E eles toparam!
Dez meses depois tínhamos as 10 mil mudas prontas para plantá-las. Fizemos uma foto aérea da cidade com um drone. Aquela secura e feiura. No computador, simulamos o plantio das árvores. E com estas duas fotos, o “está assim” e “estará assim”, o grupo da CFR foi de casa por casa, combinaram com os moradores como fazer, o lugar do plantio, o tipo de planta, como cuidar dela.
O sonho dos jovens era que esta ação fosse aparecer na TV Mirante. (Meu sonho era que ela fosse parar no Guinness Book).
Marcamos dia e hora: 10 de dezembro de 2014, às 10 horas da manhã, iriamos plantar as 10 mil mudas, em 10 minutos!
Mais de 9 mil pessoas participaram. Sucesso total. Após o plantio as pessoas corriam para o meio da rua para se abraçar, enquanto os carros tocavam aquela música da vitória do Ayrton Senna…tan tan tan tan…
Não sei se o Guinness Book registrou, mas o que eu mais desejava durante todo o tempo, era o dia seguinte (o dia 11). Ver o brilho dos olhos saltando dos olhares destes jovens e com a seguinte pergunta:
-“E agora? O que podemos fazer”?
– Tudo, cara! Qualquer coisa! Quem planta 10 mil árvores em menos de 10 minutos, vira o mundo ao avesso, chuta o pau da barraca!
– O que vocês querem? … este é o próximo desafio.
E todos nós resolvemos transformar aquela escola, num “centro de excelência em educação do campo”. E assim foi feito. A Padre Josino Tavares é referência para todas as escolas rurais do Maranhão e da região amazônica maranhense. Ali, a cada ano, se estabelecem metas a serem superadas em busca da autossuficiência hídrica, alimentícia, financeira e a busca incansável pela excelência em formação técnica, humana e profissional dos jovens da região.
Tenho muito orgulho de ter participado e vivenciado esta experiência e aprendizado para toda a vida.
P: O livro é um convite à escuta, à reinvenção e à ação coletiva. Para quem está começando na educação popular hoje, que caminhos você apontaria para quem quer fazer a diferença — e topa caminhar pelo “não feito”?
TR: Vixe! Quando deixei de ser “professor” (aquele que ensina) e optei por ser “educador” (aquele que aprende), tracei, definitivamente, meu destino: ser um eterno aprendiz, um caminho sem volta, mas sempre à frente, em direção ao não aprendido: ainda.
O ser educador é ser genuíno em sua vontade e disponibilidade de aprender o outro o mais densamente possível. É aprender o outro de tal forma que um dia, como disse Clifford Geertz, você é capaz de “diferenciar piscadelas de piscadelas”. E aprender o outro é aprender sua cultura, seus fazeres, seus saberes e seus quereres. Tudo que é público, notório e palpável, quanto o que é microscópico, os pequenos nadas. E o que um educador faz com isso? Junta as pessoas pelo seu lado luminoso, o lado cheio do copo, e juntos canalizam esta energia luminosa e transformadora para boas causas, boas encrencas, objetivos e metas que podem fazer a vida e o viver melhor e, no mínimo, para todos. Simples, né!?
Um educador não perde de vista a realidade e o contexto onde vive, mas não fica olhando para o “lado vazio do copo”, porque aí precipita o insolúvel. Seu tempo é precioso para ficar mensurando as carências e o IDH da sociedade onde vive. Ao educador deve interessar aprender o “lado cheio do copo”, onde estão os IPDH (indicadores de potencial de desenvolvimento humano) que todos grupos sociais têm que é a capacidade de Acolhimento, Convivência, Aprendizagem e Oportunidade (ACAO).
E se juntarmos todos os feixes de luz e energia, teremos um holofote, capaz de produzir, luz, energia e transformação, para todos e para sempre. A próxima etapa é fazer o não feito ainda: topam?
Add Comment