Luiz Gama: poéticas insurgentes de uma voz da liberdade
Um comentário de Mafuane Oliveira
Dia desses reli o livro Luiz Gama: A saga de um libertador, de Magui, com ilustrações de Ângelo Abu. A narrativa, acessível ao público jovem e a todas as pessoas que desejam se aproximar da biografia desse grande herói nacional, costura fatos históricos e literatura, convidando-nos não apenas a conhecer a trajetória de um dos maiores intelectuais brasileiros do século XIX, mas também a revisitar o próprio sentido da palavra “liberdade”.
Há quem cante para embalar, há quem cante para sonhar, e há quem transforme o verso em arma contra a injustiça. Filho de Luiza Mahin, mulher negra, livre e revolucionária que fez da própria ausência um gesto de presença insurgente na vida de Gama, ele herdou da mãe a sina de lutar contra qualquer sistema que negasse sua humanidade. Foi o menino vendido como escravizado pelo próprio pai, o adolescente autodidata, o advogado que libertou centenas com as armas do Direito, o poeta que escreveu para e com seu povo, o cronista que zombou da elite branca com requinte, ironia e lucidez.
Luiz Gama nasceu em 21 de junho de 1830, sob o solstício de inverno, e desde então sua palavra caminha conosco como promessa de liberdade. Se, como dizem os sábios budistas, “o inverno nunca tarda em se tornar primavera”, nosso poeta, abolicionista e jornalista foi a própria primavera para centenas de pessoas que viviam a injustiça da escravidão e tiveram suas vidas transformadas por sua voz, corpo e gesto de insubmissão.
Luiz Gama: A saga de um libertador pode ser uma introdução instigante para jovens leitoras e leitores e todos os que desejam conhecer os episódios marcantes da vida de Gama, mas não apenas isso; o texto nos aproxima intimamente da personalidade firme, irônica e bem-humorada desse ativista afiado e poeta dotado de personalidade. Algo tão apaixonante quanto ler a biografia é conhecer Luiz Gama em sua própria voz, por meio dos recortes de jornais da época, seus textos e poemas. Sua escrita é uma ponte entre gerações e um poderoso instrumento de mediação educativa, não apenas pela representatividade étnico-racial, mas por seu compromisso inegociável com a vida, a dignidade, os direitos humanos e a justiça. Luiz Gama é um herói brasileiro para pessoas negras e não negras.
Mais do que um personagem histórico, Gama é uma chave de leitura para compreendermos a história do Brasil por outro lado, bem diferente das narrativas hegemônicas de boa parte dos livros didáticos, que tardaram em incluí-lo e em reconhecer o protagonismo das comunidades negras. Sua escrita, atravessada por africanidades, oralidades e musicalidades, carrega a força e poética do “Orfeu de carapinha”, que canta ao som dos tambores da Guiné, reencanta a “Musa de azeviche”, dança nas cayumbas e convoca seus “patrícios” a se reconhecerem como sujeitos da festa, da crítica, da poesia e da política, tudo ao mesmo tempo.
Em seus poemas, nas ruas, nas cartas e nas causas que defendeu, Luiz Gama enalteceu a imagem do negro letrado que ousava rir dos poderosos e escrever para os seus. Uma das formas mais potentes de acessar sua essência está no poema “Lá Vai Verso”, em que ele reafirma sua identidade negra, evoca saberes africanos e satiriza com maestria os costumes da elite imperial, como lemos abaixo:
Lá Vai Verso!
Alta noite, sentindo o meu bestuntoPejado, qual vulcão de flama ardente,
Leve pluma empunhei, incontinente
O fio das ideias fui traçando.
As Ninfas invoquei para que vissem
Do meu estro voraz o ardimento;
E depois, revoando ao firmamento,
Fossem do Vate o nome apregoando.
Oh! Musa da Guiné, cor de azeviche,
Estátua de granito denegrido,
Ante quem o Leão se põe rendido,
Despido do furor de atroz braveza;
Empresta-me o cabaço d’urucungo,
Ensina-me a brandir tua marimba,
Inspira-me a ciência da candimba,
As vias me conduz d’alta grandeza.
Quero a glória abater de antigos vates,
Do tempo dos heróis armipotentes;
Os Homeros, Camões — aurifulgentes,
Decantando os Barões da minha Pátria!
Quero gravar em lúcidas colunas
Obscuro poder da parvoíce,
E a fama levar da vil sandice
Às longínquas regiões da velha Báctria!
Quero que o mundo me encarando veja
Um retumbante Orfeu de carapinha,
Que a Lira desprezando, por mesquinha,
Ao som decanta de Marimba augusta;
E, qual Aríon entre os Delfins,
Os ávidos piratas embaindo —
As ferrenhas palhetas vai brandindo,
Com estilo que presa a Líbia adusta.
Com sabença profusa irei cantando
Altos feitos da gente luminosa,
Que a trapaça movendo potentosa
A mente assombra, e pasma à natureza!
Espertos eleitores de encomenda,Deputados, Ministros, Senadores,
Galfarros Diplomatas — chuchadores,
De quem reza a cartilha da esperteza.
Caducas Tartarugas — desfrutáveis,
Velharrões tabaquentes — sem juízo,
Irrisórias fidalgas — de improviso,
Finórios traficantes — patriotas;
Espertos maganões, de mão ligeira,
Emproados juízes de trapaça,
E outros que de honrados têm fumaça,
Mas que são refinados agiotas.
Nem eu próprio à festança escaparei;
Com foros de Africano fidalgote,
Montado num Barão com ar de zote —
Ao ruflo do tambor, e dos zabumbas,
Ao som de mil aplausos retumbantes,
Entre os netos da Ginga, meus parentes,
Pulando de prazer e de contentes —
Nas danças entrarei d’altas cayumbas.
(In: SILVA, Júlio Romão da (Org.). Luiz Gama e suas poesias satíricas. 2 ed. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1981, p. 110-112)
Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/11-textos-dos-autores/648-luiz-gama-la-vai-verso
Este poema é uma ode à cultura negra e uma crítica aos poderosos da época, mas também um gesto de amor e de memória. Nele, Luiz Gama não apenas critica as musas pálidas da tradição europeia, mas eleva a Musa negra como fonte legítima de inspiração. Rejeita a lira grega: prefere ser o “Orfeu de carapinha”. Sua poesia é roda, é terreiro de saber, é sátira, é dança com os pés firmes na terra e os olhos voltados para a liberdade. Enfrentando os poderosos da época, Gama não poupava os “galfarros diplomatas”, os “deputados de encomenda”, “finórios traficantes” e os “juízes de trapaça” que representavam a corrupção moral da elite escravocrata brasileira que fez fortuna com a exploração ilegal do tráfico de escravizados. Inclusive, não podemos deixar de atentar para o pseudônimo Getulino, adotado por ele em sua produção literária.
A escolha desse nome, como revela a pesquisadora Lígia Fonseca Ferreira, está longe de ser aleatória. “Getulino deriva de Getúlia, território da África do Norte, correspondente à parte da atual Argélia, no passado chamada Numídia, e da Mauritânia. Esta região foi ocupada por um povo nômade, os ‘getulos’, durante a Antiguidade e a ocupação romana da África”, explica a autora. Ao adotar o nome Getulino, Luiz Gama não só se posiciona como sujeito letrado, como também reivindica sua origem africana e erudita num tempo em que esse acesso e direito eram negados à população negra. Em outras palavras, assinar Getulino era um gesto político, cultural e estético –– consciente de que estava desafiando o universo restrito dos letrados, privilégio exclusivo de pessoas brancas. Mas ele não pedia licença para existir; ele ocupava os espaços.
Esse gesto de Luiz Gama ganha ainda mais potência quando nos damos conta de quem eram seus leitores. Como aponta Lígia Ferreira, “pela primeira vez, um negro, ex-escravo até doze anos antes analfabeto, tinha a audácia de denunciar os paradoxos políticos, éticos e raciais da sociedade imperial”. Mais do que isso: Gama escrevia também para um público negro alfabetizado, leitores que, como ele, resistiam à invisibilização e à negação de sua humanidade intelectual. Ao lado de nomes como Cruz e Sousa, Maria Firmina dos Reis e tantos outros, Luiz Gama inaugura uma linhagem de pensamento negro brasileiro que não separa estética e ética, sensibilidade e combate.
Celebrar Luiz Gama é também escutar o eco de sua ancestralidade, das tradições islâmicas da África Ocidental, dos malês perseguidos, das bibliotecas de Timbuctu. É reconhecer que sua oralidade e escrita não nasceram do acaso: são heranças vivas de um povo que nunca foi escravo, mas escravizado, e que, como ele, fez da força da palavra e das histórias um instrumento de liberdade.
A voz de Luiz Gama ainda ecoa nas ruas de São Paulo
Desde 2013, a Caminhada Luiz Gama refaz com os pés vivos e palavras em marcha o trajeto de sua despedida, no mês de agosto. Parte do Cemitério da Consolação, segue até o Sindicato dos Jornalistas, atravessa o Largo do Arouche e encerra em sarau. É o povo negro reocupando a cidade com a memória do advogado que libertou mais de 500 cativos com a palavra. Ali, entre tambores e livros, jovens e idosos, crianças e militantes reafirmam que Luiz Gama não está enterrado, mas plantado. Está nas rodas de leitura, nas escolas públicas, nas bibliotecas comunitárias, nas páginas das leis que ainda precisam ser cumpridas. Está em toda criança negra que ousa dizer: “Eu também posso escrever”.
Todos os anos, no dia 21 de junho, celebramos não apenas o nascimento de Luiz Gama, mas o nascimento contínuo de sua obra. Porque enquanto houver injustiça, Luiz Gama seguirá nos inspirando a lutar por justiça. E enquanto houver gente disposta a preservar sua memória, ele seguirá livre, vivo e poético sempre.
Mafuane Oliveira é contadora de histórias, escritora, educadora e mestranda no Instituto de Artes da UNESP. Tem dedicado suas pesquisas aos temas da memória, performance, oralituras afrobrasileiras, literatura infanto-juvenil e culturas da infância. É criadora da Cia Chaveiroeiro, projeto de narração de histórias e formação de professores, apresentadora do programa Contos Rá Tim Bum, co-autora do livro Mesma nova história e autora do livro Cinderela do rio, publicados pela Peirópolis.
Luiz Gama, a saga de um libertador
A biografia Luiz Gama, a saga de um libertador, escrita pela psicóloga e educadora Magui, ilustrada por Angelo Abu e prefaciada por Tom Farias, convida os leitores a conhecerem a trajetória de Luiz Gama, desde a infância marcada por abandonos e pela experiência da escravização até os caminhos que trilhou na juventude e os feitos notáveis na vida adulta. A autora constrói a narrativa a partir de uma carta escrita pelo próprio Gama a um amigo, na qual relata os momentos mais decisivos de sua vida, complementando-a com uma pesquisa rigorosa que resulta em um texto de leitura fluida, que equilibra ficção e rigor histórico. Ao apresentar a luta incansável de Gama pela liberdade de pessoas escravizadas ilegalmente, a obra convida à reflexão sobre as injustiças e desigualdades sociais persistentes no Brasil, contribuindo para que os leitores compreendam as relações étnico-raciais e os impactos dessas questões na construção da identidade e da autoestima da população afro-brasileira.
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