A monstruosa sombra - Editora Peirópolis

A monstruosa sombra

Por Penélope Martins

Dói-me imenso escutar a canção O Ciúme de Caetano Veloso. Talvez porque eu sinta atravessar no peito essa flecha preta que fere nossa garganta quando olhamos para fora o mundo e vemos o que não temos. E cobiçamos para nós, e queremos que seja nosso. A canção é muito mais, eu sei (e talvez o melhor seja o que eu não saiba, embora sinta), mas hoje veio cantar de novo na minha memória sua melodia de arranhar entranhas:

Tanta gente canta, tanta gente cala

Tantas almas esticadas no cortume

Sobre toda a estrada

Sobre toda a sala

Paira a monstruosa sombra do ciúme.

O ciúme mora perto da inveja. Talvez sejam irmãos gêmeos. Talvez xipófagos de mesmo coração venenoso. Veneno certeiro de cobra que dá o bote antes que a gente perceba. É preciso estar atento.

Não costumo querer o que não tenho; das coisas de usar pela vida, digo que não preciso de muito e que tem sido bom assim do jeito que está. Mas sinto inveja quando olho pela janela do carro e vejo a meninada no farol. Sinto inveja de ser um país que não tenha meninada a pedir esmolas no farol. E sinto ciúmes de que essa melhor ordem social não seja aqui para nós e para as minhas crianças que crescem desabrigadas em farois com os pés sujos de fuligem. Carbonizadas.

Hoje me doeu fundo essa inveja.

Recentemente me desmanchei inteira em um projeto de contar histórias aqui e do outro lado do Atlântico. Pedi livros aos autores e eles generosamente retribuíram ao meu chamado. Gente que nem me conhece. Gente que nem sabe o quanto eu sou invejosa, ciumenta até. Os livros me foram enviados pelo serviço postal da minha terra – gosto tanto de receber pacotes postais, cartas, cartões; o serviço postal parece tornar mais real o mundo das gentes, mas isso é outra coisa e não cabe aqui, nem agora, a não ser para dizer do atraso de um dos enviados.

O último livro que chegou a minha morada foi o seu Renata Farhat Borges. O livro chegou e eu já estava quase chegando de viagem. Sei lá que sucedeu, mas atrasou um bocado. Não entrou na minha mala, ficou na minha mesa esperando por mim.

Por isso, hoje eu queria falar de Mariinha, a menina com pés bem feitos que aparece na sua história, Renata. Ocorre que eu tenho pouca propriedade para falar de Mariinha. Não pela falta de inveja que mordiscou a menina (quem de nós está livre), mas pela falta de pés bem feitos, bem torneados, além de ser minha pele desbotada e meus cabelos retratam infância palha de milho.

Inveja é um livro tocante. Bastava colocar a história num papel branco, em letrinhas sem graça tipo arial 12 que já estava bom demais para chorar aos soluços. Mas não, e isso é tanto melhor. O objeto livro, ilustrado por Silvia Amstalden nos conduz na letra e na forma, percorre as pegadas dos personagens e rasteja por debaixo dos nossos tapetes empoeirados, a caça de nossos sentimentos recôndidos. Perfeita edição.

A amizade de duas meninas que vivem vidas tão distintas e que por uma infelicidade qualquer sabem uma da outra. Infelicidade qualquer digo, querendo dizer que a infelicidade abriga a felicidade do encontro tantas vezes incompreendido.

Roberta vem da cidade, menina requintada, bem criada com meias brancas que alcançam os joelhos. Algumas das meninas que eu conheço, inclusive eu, tiveram meias assim. A gente se vestia de saia, camisa, gravatinha de laço e meias até os joelhos. Os sapatinhos pretos típicos dos colégios de freiras. A gente não sabia colher fruta no pé, nem precisava varrer a casa nas manhãs de sábado, dia de faxina.

Roberta visita a casa de fazenda de tempos em tempos. Ver as frutas, sentir cheiro de capim novo enquanto o pai cuidava do gado, as coisas de adulto.

Mariinha é filha de dona Filquinha, a caseira. Mariinha não tem irmã mais velha e é ela a única a ajudar a mãe nos afazeres. Coisa chata.

“Tinha ela que ajudar a mãe a dependurar as roupas no varal. Nem sabia por que dona Filquinha esfregava tanto, se os trapos continuavam trapos e tingidos da cor da terra da região. Queria um dia ter uma roupa todinha branca: saias, rendas, e meias…”

Foi num dia assim, de dependurar roupas, que Mariinha achatou o rabo de uma cobra. E outros dias vieram com o veneno correndo pelas veias da menina. Letal, viscoso, capaz de embriagar pensamentos.

Prefiro imaginar que Renata usou de uma metáfora para contar a amizade de Mariinha e Roberta; trato de reconstruir um final para a história. Porque sou incapaz de me livrar do ciúme de querer para mim um final feliz. Dói fundo. Dói-me como a flecha preta do ciúme que tenho das crianças que passeiam com bicicletas coloridas pelos parques das cidades em que não se houve falar de miséria. Não que Mariinha fosse dessas meninas que eu vejo aqui na cidade, de pés sujos de fuligem, com sandálias gastas de asfalto. Mariinha era pés bem feitos, pernas fortes e tinha da mãe, dona Filquinha, os cuidados e os agrados. Mas Mariinha carrega no peito uma distância que não cabe no peito de criança.

Inveja faz ver nós todos no desejo incontrolável e quase cruel de ter a vida de outra maneira; a inquietude do inconformismo selvagem que nos afasta até do que é bom. Inveja é nossa velha conhecida, onde somos desnudados humanos – demasiadamente humanos.

Um livro para ler com olhos, voz alta, toque e olfato. Um livro para colocar na vitrola e deixar que a música nos acorde e nos livre do ciúme.

Um livro que escapou de entrar na minha mala e ir para Portugal antes que eu pudesse estar com ele. Mas tinha que ser para mim. E foi.

Obrigada Renata.

Para ouvir a música Ciúme, de Caetano Veloso

Para conhecer a coluna de Penélope Martins: http://todahoratemhistoria.wordpress.com/2014/02/27/a-monstruosa-sombra/

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