Brincar para se proteger do esquecimento - Editora Peirópolis

Brincar para se proteger do esquecimento

Prefácio à obra Noite de brinquedo, de Antonia Mattos e Gabriela Romeu

por Bel Santos Mayer

“Só quem vive de inventar o próprio viver sabe se fartar de invisível.”

Noite de brinquedo, p. 104

Sou a terceira de cinco filhas de um casal baiano. Fui embalada no colo e nas histórias de avós. Isso talvez explique meus olhos faiscantes e meu coração de tambor ao receber o chamado para este prefácio. Inundei-me de felicidade trêmula para abrir alas às palavras e imagens de um trio de autoras-arteiras que não se cansam de pôr belezuras no mundo. Precisei dormir um sonho. Acordei embrenhada no sertão desalumiado, de mãos dadas com as Caboclinhas e com Maria Sete Estrelas – uma rainha de reisado. A coragem da menina conteve meu titubeio no escuro da escrita. Fui. Tracei um mapa, para dele me livrar, “chegar de primeira” e pisar outra vez os caminhos.

Coloquei as certezas de gente grande em descanso. Corri a passos miúdos para o longe da infância. Entreguei-me a encantos e encantadas. Encontrei histórias do ritual de passagem de uma menina do sertão, que bem poderia ser a história de toda menina que não quer deixar de brincar as cores do seu povo só porque cresceu. Juntei-me a ela pelo direito de não ser desigual. Deparei-me com uma narrativa cênica que, para além de uma simples transposição da performance para a escrita, revela a capacidade de escuta das autoras. Elas são mestras na leitura de pupilas e de movimentos dos corpos.

Suas escritas me remeteram a duas grandes pensadoras e escritoras brasileiras: Conceição Evaristo e Leda Maria Martins. Da primeira, bebemos a Escrevivência – o registro escrito das vivências, dos amores e revoltas, das identidades, dores, medos, lutas e conquistas. A segunda nos ofertou a Oralitura – a literatura que, antes de ser escrita, é oralidade, é memória-poética na voz e no corpo. Encontramos tudo isto em Noite de brinquedo: há sonoridade, ritmo, gira e um vaivém entre o escutado, o sentido e o escrito, que nos conduzem em cortejo, a partir das margens, por um Brasil profundo. A cada paragem, brincando, um cordão de lembranças vai sendo tecido.

Num tempo em que se busca o frescor tecnológico das juventudes, desprezando conhecimentos ancestrais e a voz das crianças, a brincadeira do reisado entrelaça saberes e fazeres de diferentes gerações: velhos, velhas, crianças, jovens, mulheres, homens, visíveis e invisíveis se juntam. (Re)vivem a tradição. (Re)inventam. Brincam.

Nas letras que iniciam os capítulos, vemos (eu vi!) gente em movimento. Li como um convite para nos movermos por “sertões, roçados, reinos, folguedos, procissões” e corações. É preciso se esticar, virar a cabeça, saltar, se contorcer para (mo)ver o novo, abrir veredas. Ver o (in)visível!

Temos em mãos um livro que faz cócegas na imaginação e espana esquecimentos. Boa leitura! Boas lembranças!

Bel Santos Mayer é educadora social, coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (IBEAC) e cogestora da Rede LiteraSampa.

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