Entrevista com Paulo Netho, autor de Bolinho de chuva - Editora Peirópolis

Entrevista com Paulo Netho, autor de Bolinho de chuva

Bolinho de chuva e outras miudezas, do poeta Paulo Netho, é o mais recente lançamento de poesia para o público infantil da Editora Peirópolis. Seu autor integra a tribo de poetas que inspira a vida e a devolve em poesia o tempo todo, levando-a para o contato direto com o público em apresentações com Salatiel Silva, seu parceiro constante no grupo Balaio de Dois. Em entrevista neste post o autor fala da sua concepção de poesia para crianças, da experiência com poesia na escola e dos escritores que o influenciaram, entre eles Francisco Marques, o Chico dos Bonecos, que teve participação ativa neste lançamento. As ilustrações são de Carla Irusta.

Confira abaixo a entrevista com o autor.


Entrevista com Paulo Netho: o lugar da poesia na infância, na escola, no mundo

No blog Cara de Pavio você revela que o desejo de ser artista nasceu aos 10 anos, quando assistia a uma apresentação do mímico Ricardo Bandeira. Não é curioso que você tenha escolhido justamente a poesia, arte da palavra e em geral solitária, distante de apresentações públicas?

Curiosíssimo mesmo porque quando garoto eu nutria o sonho de ser jogador de futebol, mas depois daquele sábado frio de 1975, no auditório da escola, quando o mímico interagiu comigo – talvez porque tenha notado os meus olhos arregalados, o meu queixo caído, sei lá, o meu encantamento de menino esquecido – aquele simples ato marcou-me para todo o sempre. Lembro-me bem, o Ricardo Bandeira estava num ponto do palco fazendo de conta que esticava um chiclete tirado da boca e eu do lado oposto, sentado na plateia; ele se aproximou de mim e me deu a outra ponta daquela goma de mascar inventada e eu puxava com força como se estivesse puxando um cabo de guerra, como se aquilo fosse um legítimo chiclete; e era, e, é, até hoje.

Depois desse dia, houve uma apresentação dos alunos naquele mesmo auditório e eu me encorajei e recitei uns versinhos para a dona Antonieta, minha querida e inesquecível professora de História. Essa foi a primeira vez que recitei para um público e gostei da experiência, mas não sabia se iria fazer isso outra vez. Mas daí quando comecei a escrever poesias, a necessidade de recitar o que escrevia falou mais alto, por causa do desejo que tinha de encontrar interlocutores dispostos a dividir e multiplicar comigo pequenas frações de emoção.

Nessa minha trajetória, a palavra falada sempre foi uma coisa muito forte, tão forte como a solitária arte da escrita. Embora se diga por aí que a poesia não tem utilidade nenhuma, eu logo percebi que as pessoas precisam de vento na alma, passei a escrever e a recolher ventos para depois soprá-los a quem quer que seja sem me importar se alguém quer ouvir ou não, como naquela canção do Milton Nascimento. Enfim, no meu caso, a palavra falada não só alavancou a palavra escrita, como me deu voz e vez na vida. Então, vejo com naturalidade os momentos em que estou me apresentando publicamente. Gosto dessa situação prazerosa.

Bolinho de chuva e outras miudezas, seu sexto livro, traz poemas muito bem relacionados entre si, formando uma sequência de leitura muito fluida. Como foi que eles nasceram? São todos de uma mesma safra, ou você foi guardando para uma seleção posterior?

Preciso confessar uma coisa antes: já havia a intenção de publicar algo pela Peirópolis por causa do Chico dos Bonecos (meu amigo-irmão). Quando conheci a Renata Borges, disse a ela que um dia faria um livro especialmente para a editora. Então passei a escrever e a burilar os poemas e mandava para o Chico e recebia suas críticas, opiniões e apoio. Dos 41 poemas do Bolinho de Chuva, apenas três – “Mico geral”, “Vale ouro” e “Como quiser” – puxei dos meus guardados. Os outros 38 são inéditos, são frutos dos exercícios de esquecimento que costumo praticar – e foi aí que comecei a povoar as páginas em branco de meninos, pássaros, sonhos, crenças e gracejos.

Sua poesia tem um pé na linguagem coloquial contemporânea, cheia de humor, como nos mostra dois títulos de poemas – “Mico geral” e “Mega desamparo” –, ao mesmo tempo em que tem ares muito atemporais. Quais escritores te alimentaram no percurso?

São tantos, mas vou começar pelos poetas: Carlos Drummond, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Cecília Meirelles, Henriqueta Lisboa, Oswald e Mário de Andrade, Murilo Mendes, Mário Quintana, Manoel de Barros, Adélia Prado, José Paulo Paes, Elias José, Ferreira Gullar, Paulo Leminski, Arnaldo Antunes, Sérgio Capparelli, e, é claro, o Chico dos Bonecos.

Isso sem contar outros autores que adoro, como: Machado de Assis, Monteiro Lobato, Gabriel García Márquez, Jorge Luis Borges, Eduardo Galeano, Italo Calvino, Godofredo Rangel, Guimarães Rosa, José Mauro de Vasconcelos, Henrique Félix, Roseana Murray, Eva Furnari, Tatiana Belinky e mais um monte.

Chico dos Bonecos conta que a leitura dos seus poemas não foi apenas uma leitura em si: ela apresentou a ele uma pessoa. Isso diz muito sobre a subjetividade que se encontra no texto poético, mais do que em qualquer outro. Em Bolinho de chuva e outras miudezas o “eu lírico” e o “eu biográfico” andam juntos?

De mãos dadas, abraçadinhos, o tempo todo. Um e outro compõem a minha voz poética.

Muito se comenta sobre a falta de disposição das escolas em geral para trabalhar com o texto poético. Considerando que a maior riqueza da poesia não é captada por interpretações racionais que buscam “qual a mensagem”, alguns professores preferem evitá-la. Como tem sido a sua experiência em relação a isso?

Quando as coisas não passam pelo coração, eu nada entendo. Lendo a biografia de Villa-Lobos, colhi um depoimento do compositor onde ele demonstra a fé que tinha nas crianças e nos jovens ao defender a importância de ensinar o canto orfeônico nas escolas do Brasil de sua época; achava essencial educar os nossos alunos para que tivessem uma educação primária de senso estético.

Transportando essa sabedoria para a poesia, a minha experiência como recitador me mostrou que as crianças e os adolescentes são sensíveis à poesia, sim; o que falta é gente bem treinada para o exercício vital de mediar ventos com essa gente que se entrega aos deslumbramentos das primeiras descobertas, algo que a poesia enseja nas pessoas.

Certa vez, cheguei a uma escola para recitar e a professora foi logo dizendo que os seus alunos não iam me ouvir, porque eles não gostam de poesia, porque eles não gostam de nada. Para encurtar a ladainha, eu disse que mesmo assim queria tentar e o resultado não poderia ter sido melhor: os alunos não só me ouviram como recitaram comigo e não queriam que eu fosse embora. Então, além de ensinar o senso estético, as escolas e os professores precisam urgentemente compreender que a poesia ajuda a construir uma pessoa. Graças ao exercício de ler e recitar poesia consegui vencer os meus medos mais remotos, como uma gagueira emocional e, além disso, a poesia, embora “não sirva para nada”, me ajudou a construir a minha história, uma história todinha feita de palavras.

Desde 1997 você se apresenta com seu parceiro Salatiel Silva no grupo Balaio de Dois, fazendo recitais em escolas, bibliotecas, livrarias, Sescs e eventos do mundo do livro. O que mais te marcou nesses 14 anos de andanças e contato com o público infantil?

O que mais me marcou nesse tempo todo, sem dúvida alguma, foi notar a disposição que as pessoas têm para voar; voar com palavras altaneiras, repletas de imagens inusitadas. Tanto adultos como crianças, em nossas apresentações, experimentam exercícios de leveza como o que aconteceu com um menininho de uns 5 anos, mais ou menos, chamado Luiz Antônio. Ele esteve em cinco das seis apresentações do Balaio de Dois no SESC Vila Mariana. Sabia tudo de cor: cantou, recitou, tirou foto com a gente, nos ofereceu suco, apresentou a mãe, o pai, a irmãzinha e até deu uma canja para delírio da plateia.

Assim como esse menininho, muitas outras crianças se rendem aos encantos que a boa palavra provoca no ouvinte. E a exemplo do Ricardo Bandeira, acredito que estamos deixando marcas indeléveis nas crianças de hoje, e, por menor que seja, a marca de cada um sempre fica. Todas as vezes em que estou diante das crianças assoprando-lhes delícias poéticas, parece que algo extraordinário acontece. Primeiro, achava que as crianças gostavam de ser provocadas por mim, mas depois observei outras coisas; notei, por exemplo, que a minha ação não se limitava – única e exclusivamente – a uma simples provocação. Tinha algo a mais, a que aqui vou chamar de convocação.

E a que você as convocaria?

A degustarem o mundo maravilhoso dos livros e da leitura. Aliás, eis a ponte que primeiro nos uniu. Nesses encontros, o meu objetivo sempre é o de presenteá-las com palavras boas de ouvir e dizer, sem nenhuma preocupação moralista e nem mesmo didática. A minha intervenção tem outra natureza, que é a de trazê-las para os mistérios e as alegrias das falas adormecidas. A isso me proponho. Afinal, nunca desejei nada mais do que isto. Apenas isto.

A poeta Henriqueta Lisboa, autora de O menino poeta, disse que não existe poesia “para crianças”, que não escrevia especificamente para um público “x”, e muitos outros escritores concordam com ela. Como é isso pra você? Seu texto surge “sem endereço”, ou você considera uma faixa etária?

Aprendi isso com o Chico dos Bonecos, não escrevemos para as crianças, escrevemos para a Infância. Fazemos livros em que as pessoas possam se reconhecer e possam trocar afetos novos e afetos esquecidos. Afetos de todas as maneiras.

Então você vivencia o “estado de infância” de que falam alguns poetas, como Manoel de Barros? Será que a melhor poesia “para crianças” é, na verdade, uma poesia que canta a infância, uma poesia que celebra as “miudezas” que perdemos pelo caminho?

Acredito piamente nisso e é por isso que eu olho para as coisas como se fosse a primeira vez. Respeito os progressos da modernidade, mas me vejo eternamente como um menino antigo que ainda se encanta com a imagem da mãe cantando: “Quando eu morrer me enterre na lapinha/ calça, culote, paletó, almofadinha”. O mundo está atribulado e falar das miudezas perdidas foi o caminho que encontrei, só assim consigo restituir todas as minhas faltas.

Você é autor de outros cinco títulos. Como cada livro é como um filho, uma história singular para o autor, o que este lançamento lhe traz em especial?

Como disse, escrevi este livro para restituir todas as minhas faltas e sinceramente espero que o lançamento deste “Bolinho de Chuva e outras miudezas” possa fazer moradia no coração do leitor.

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