Entrevista: Renata Borges, autora de "Inveja", que integra a seleção FNLIJ para Bolonha - Editora Peirópolis

Entrevista: Renata Borges, autora de "Inveja", que integra a seleção FNLIJ para Bolonha

“Uma picada de inveja pode envenenar a amizade?” Esta é a pergunta que se insinua nas dobras de Inveja, segundo livro infantojuvenil da escritora Renata Farhat Borges, diretora da Peirópolis. Em entrevista neste post a autora conta sobre seu processo criativo.

Autora do ensolarado Amigagem, relato de um belo encontro que permanece na vida de duas pessoas, Renata arrisca-se agora a levar ao público infantojuvenil um tema delicado. E é justamente com delicadeza que autora e ilustradora – a parceira Silvia Amstalden, que assina também o projeto gráfico – abordam esse “afeto triste”, como diria o filósofo Espinosa. A história de Roberta e Mariinha desenrola-se em forma de sanfona, metáfora que não se encontra ali à toa. Como no livro anterior, a relação entre texto, ilustração e projeto gráfico tem seus motivos, o que certamente contribui para o resultado final em ambos os títulos. Inveja e Amigagem são fruto do gosto de ambas, a escritora/editora e a arquiteta/ilustradora, pelo objeto-livro.

Nas palavras de Renata e Silvia, Inveja esconde aquilo que é precioso, o que imaginamos que o outro tem e que nos falta ou o que o outro acredita que temos e que lhe falta. Entre nós, autora e ilustradora, o que uma não tem a outra complementa. Chamada pelo texto, a imagem corre rasteira pelo formato sanfonado do livro como um animal à espreita que passeia pela história.

Inveja foi realizado com apoio do Governo de São Paulo, Secretaria de Estado da Cultura – Programa de Ação Cultural de 2010.

ENTREVISTA

1 – Como surgiu a ideia para a obra e como foi o processo de criação?

Sempre li e exercitei bastante a história curta, o conto. E, com bastante ênfase, venho trabalhando memórias de infância como uma forma de recriar esse mundo e revisitar contextos em que valores fundamentais da minha vida foram semeados.

Meu processo criativo costuma ser bastante intenso. Quando sento para escrever, é porque o tom, o lugar do narrador, a estrutura do texto já está resolvida. Eu escrevo muito na cabeça, antes de dormir e nos momentos mais corriqueiros da minha vida atribulada de empresária, editora e mãe de três filhos. Depois trabalho bastante a linguagem, porque é outra coisa que me interessa muito na literatura – a linguagem, para além da história.

2 – Este é o segundo projeto escrito por você e ilustrado por Silvia Amstalden, como surgiu esta parceria? No processo de criação das ilustrações você participou ou a Silvia teve total liberdade?

Conheci a Silvia de um jeito muito engraçado. Apaixonei-me loucamente por uma artista plástica brasileira, considerada uma autêntica dadaísta, durante uma exposição na Pinacoteca de São Paulo, e comprei o catálogo da exposição. A artista se chama Niobe Xandó (Xandó, que é, aliás o, apelido afetivo do meu filho do meio). O universo da Niobe é muito próximo das artes gráficas, e ela trabalha muito com os mecanicismos psíquicos, de forma que me impressiona muito. Bem, falei tanto nela para todos os meus conhecidos que um dia um deles conheceu a designer gráfica que fez o projeto do catálogo da exposição dela, por acaso, e comentou: nossa, conheço uma pessoa que está louca por essa mulher. Era eu. A designer era a Silvinha. Eu cheguei a ir até a casa da Niobe conhecê-la, conversei com ela e sua filha, e também procurei a tal designer. Quando a Silvinha chegou na minha frente, tive uma surpresa: parecia que estava vendo a mim mesma! Foi empatia total, um grande encontro.

A Silvia é uma artista, trabalha com projeto e conceito. Ela não é capaz de apenas ilustrar um texto. Demora bastante na criação de uma linguagem para cada obra, e sinto que ela vive intensamente esse processo criativo, que é só dela. Ganho de presente as recriações gráficas que acompanham meus textos. Lógico que estamos construindo juntas um projeto, que tem a ver com memória de infância, com o estímulo do jovem à escrita, e com a recriação de livros-objetos, feitos quase artesanalmente, O primeiro, um caderninho com costura singer. Este, um caderninho chinês, um livro-sanfona, que tem tudo a ver com a história.

3 – A sua obra anterior Amigagem, assim como Inveja, aborda o tema amizade. Por que a escolha do assunto se mantém presente em suas obras?

A amizade é um tema que me intriga muito. E sempre. De certa forma, Silvia e eu estamos construindo nessa parceria uma história de amizade, complementando as manifestações e subjetividades uma da outra, exercitando o respeito às diferenças, a escuta, a convivência entre linguagens e formas de ver o mundo.

Acredito que as primeiras amigas, aquelas da infância, acessam verdadeiramente alguns mecanismos internos da gente. São significativas e valiosas as primeiras relações que a gente tem fora da família, mas também não deixam de ser construções. Acho, na verdade, que tento entender vários aspectos da amizade com essas narrativas que vêm do fundo da minha memória. Hoje entendo que as amizades devem ser atualizadas, novas construções são possíveis, relações caleidoscópicas em que a gente oferece um pouco da gente e aprende a receber amorosamente e sem julgamento o que o outro nos oferece. Na infância, sinto que as relações entre meninas são pautadas por uma certa crueldade, uma crueza, talvez. Uma falta de modos, sei lá.

4 – A inveja é um tema sempre delicado e muitas vezes não é reconhecida por aqueles que a manifestam. Para você o que é inveja? E o que leva uma pessoa a manifestar tal sentimento?

Uma das descobertas mais dolorosas de que me lembro na minha história de vida foi a de que a inveja vem de onde menos se espera, ou seja, daqueles que nos conhecem, e até dos que nos amam. Ataques de inveja são comuns em qualquer convivência: no mundo do trabalho, no mundo social, e também na família. Considero que esses ataques, muitas vezes involuntários, que sofremos daqueles que nos amam, são uma manifestação mais ou menos prosaica e impensada de um limite que o outro quer te dar.

5 – Como editora e jornalista você está acostumada à leitura e a escrita frequente, você acredita que a junção dessas duas profissões facilita quando está escrevendo um livro?

Desde que me conheço por gente, trabalho com a palavra. Escrevo desde muito pequena, sempre com a intenção de escrever literatura. Formei-me em Jornalismo, trabalhei com texto em revistas, jornais, rádio, assessoria de imprensa, época em que dessacralizei o texto e a escrita. Mas aí apaixonei-me pelo ofício quase artesanal de fazer livros. Para mim foi um grande marco. Não queria mais escrever livros, queria pensá-lo, editá-lo – essa virou minha paixão. Naquela época em que a escrita estava dessacralizada, o livro virou a minha religião. Ele era a mensagem, era o bem cultural capaz de provocar transformação. Eu queria fazer livros. Fiz isso por quinze anos até que a autora que me habitava exigiu seu espaço. Foram dez anos de terapia para eu deixar a autora se manifestar novamente. Agora que ela está aí, não tenho mais como escondê-la. E devo usar os meus recursos para dar voz a ela.

6 – Qual a mensagem que você deseja passar com a obra?

Outro dia tive os primeiros contatos com leitores verdadeiros, gente que havia lido meus livros e que manifestou-se sem conhecer a minha presença no grupo. Fiquei muito comovida em perceber que essa possibilidade real de comover com a palavra. Acho que não existe uma única mensagem, mas sim o desejo de comunicar, comover, afetar o outro.

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