"Sequência": a vida de duas meninas nas ruas de São Paulo - Editora Peirópolis

"Sequência": a vida de duas meninas nas ruas de São Paulo

Sequência – Nossa vida na rua traz episódios vividos por Maria e Aline, duas meninas entre 10 e 13 anos habitando as ruas de São Paulo. Concebido e organizado por Beth Ziani, o livro foi editado por Verônica Couto e ilustrado por Silvia Amstalden, que assina também o projeto gráfico.

Leitura para jovens e adultos, Sequência – Nossa vida na rua ocupa o lugar híbrido em que a literatura encontra o documental, resultando em um texto interessante e muito comovente. Amizade, comportamento humano, enfrentamento de dificuldades, problemas sociais e memórias, tudo isso na voz de Maria e Aline, que durante o período em que estiveram entre a rua e os abrigos selaram uma forte amizade.

Maria e Aline hoje

Atualmente Maria mora em Indaiatuba, cidade no interior de São Paulo, onde trabalha como diarista. Há três anos vive com Fernando, pai do seu filho Gabriel, e espera o segundo filho. Tem planos de voltar aos estudos.

Aline está em liberdade desde 2010. Atualmente mora num albergue na zona leste de São Paulo e trabalha numa cooperativa de reciclagem de lixo. Ela pretende alugar uma casa em breve e também quer retomar os estudos.

Prefácio e posfácios

Abaixo publicamos o prefácio e o posfácio da organizadora da obra, Beth Ziani, que é professora de literatura da USP e pesquisadora de narrativas orais, e o comentário de Graziela Bedoian, coordenadora da Área de Ensino e Pesquisa do Projeto Quixote.


APRESENTAÇÃO

Beth Ziani

Quando eu nasci, algum anjo disse: “Vai, Beth, ser catadora de histórias. Não de todas as histórias, mas de histórias de vida”. Comecei a entender o significado desse legado quando ouvi a primeira história de vida. Entre linhas, agulhas e laçadas, minha avó me contou sobre os nossos antepassados e mostrou-me um pouco do eterno que existia em nós. De lá pra cá, essas narrativas vêm ao meu encontro nas vozes de velhos, crianças e jovens.

Ao conhecer Maria e Aline, havia registrado muitas histórias, mas nenhuma tinha me sensibilizado tanto. O abandono, a fragilidade, a coragem, o medo, a rua e os abrigos foram aspectos que estimularam a criação deste livro. O meu principal desafio foi entender a dinâmica da rua e como as crianças sobrevivem num ambiente tão inóspito. Nessa época, o Centro da cidade de São Paulo passou a fazer parte da minha vida não só por meio das histórias contadas por elas, mas pelo meu cotidiano. Depois de conhecer suas aventuras, eu não conseguia olhar para aqueles meninos largados nas calçadas sem me sentir completamente impotente. Restou-me lutar para que esta publicação acontecesse, pois nela eles estariam representados.

O livro traz episódios vividos por Maria e Aline entre 10 e 13 anos, época em que selaram uma forte amizade e pareciam ter um pacto: a fuga. Às vezes, carregavam sacolas e mochilas, outras, largavam tudo e fugiam. Afinal, morar na rua dava liberdade. Em pequenos relatos, narram o cotidiano no abrigo Taiguara, descrevem pessoas e instituições que apoiam crianças e jovens, declaram os perigos da rua e denunciam a violência e as discriminações sofridas.

A fragmentação da rua e o ritmo de vida dessas meninas estão representados na estrutura dos textos e nas pequenas descrições. Como em um diário compartilhado, Aline e Maria revezam-se na narração em primeira pessoa, com linguagem coloquial, muitas gírias e a espontaneidade característica da fala.

O título do livro destaca um costume do grupo – diante de uma realidade tão difícil, algumas regras são definidas; entre elas, a necessidade de dividir o que ganham, principalmente a comida. Munidos de um espírito solidário, transformam o ato de compartilhar em um jogo, no qual não é permitido enganar ou tirar vantagem dos amigos. E definem a palavra “sequência” como a senha de manutenção dessa norma.

Fizeram parte dessa história a biblioteca Monteiro Lobato, o Centro Cultural São Paulo, a Igreja da Santa Cecília, onde nos encontrávamos para as leituras e discussões dos textos; o Parque Villa-lobos, o passeio de bicicleta e muitas risadas; chocolate branco com coca-cola e o pastel do sacolão da Rua Dona Veridiana; a Cláudia, madrinha da Aline; e a nossa avó do coração, Julinha (in memóriam), que nos acolhia em seu apartamento na Praça da República.


PÓSFACIO

Beth Ziani

Maria e Aline conheceram-se ainda crianças em um abrigo na cidade de São Paulo, o Taiguara. Ali, encontraram o acolhimento que não tiveram em suas famílias. Ambas romperam os vínculos com os pais muito cedo. Aline, aos 6 anos, saiu do bairro de Santo Amaro em direção à Praça da Sé. Maria, aos 9, vendia balas em semáforos para uma mãe de rua.

As duas passaram por vários abrigos e casas de acolhida – Maria por vinte, aproximadamente, e Aline por quase o dobro – até atingirem a maioridade. As ruas do Centro da cidade fizeram parte do cotidiano das meninas. Praça da República, Vale do Anhangabaú, Rua 24 de Maio, Túnel da Roosevelt, Praça da Sé tornaram-se extensão de suas casas; lugares onde dormiram, brincaram, usaram drogas e aprenderam a se virar sozinhas.

Em 2004, conheci Maria e tornei-me sua madrinha – assim são definidas as pessoas que convivem com crianças em situação de abrigo. Percebi, então, o significado da expressão “criança em situação de rua e de abrigo”. Em um ano, Maria passou por três instituições. Maria e Aline reencontraram-se em 2006, dois anos após deixarem o Taiguara. Maria estava com 15 e Aline 16 anos.

Conheci Aline nesse período. No nosso primeiro encontro, ela apresentou-me a cidade na perspectiva da Noinha do Vale, um dos seus apelidos. E com orgulho, contou suas experiências, pouco a pouco colocando Maria como sua companheira de aventuras. Assim nasceu a ideia do livro!

O meu papel foi puxar o fio da memória e organizá-lo. Foi um processo difícil, pois a inconstância e a fragilidade das relações eram as referências dessas meninas. As histórias foram selecionadas por elas, contadas, comentadas e depois escritas. Entre 2006 e 2007, nos encontramos semanalmente para conversar sobre os textos. Em determinado momento, senti a necessidade de aproximar-me dos locais descritos por elas. Assim, pude concretizar as seringueiras e os bueiros como guarda-roupas, o coreto da Praça da República como uma extensa cama que acolhia todo o grupo, a pescaria das moedas nas caixas de luz, as brincadeiras, as brisas, os medos e as violências.

O projeto do livro ficou parado por alguns anos, mas continuamos convivendo. Nesse período, tive a parceria de uma pessoa importante, Claudia, madrinha de Aline. Compartilhamos situações difíceis como a guarda provisória rejeitada, as fugas, as drogas, a ausência de notícias, a proximidade da maioridade, a prisão de Aline e a gravidez de Maria.

Maria e Aline não conseguiram modificar o que a sociedade reserva a esses jovens. Maria (19 anos) tem um filho e vive com o marido no interior de São Paulo. Aline (20 anos) cumpriu pena por dois anos e vive na cidade. Nossas histórias permanecem entrelaçadas: eu e Maria, Aline e Cláudia. Tecemos uma bela história. Elas aprenderam a confiar e a cuidar das relações sem fugir e largar tudo para trás. E me ensinaram a rever valores e a confiar no afeto como força de transformação.

Sequência Maria. Sequência Aline.


UMA OUTRA HISTÓRIA

Graziela Bedoian

Cada vez mais, vemos crianças e adolescentes vivendo no circuito das ruas e das organizações sociais nos grandes centros urbanos do brasil. Muitas fazem da rua seu espaço privilegiado de lazer, sobrevivência, moradia, relações e apresndizagens.

As motivações para sair de casa e viver nas ruas, interrompendo ou rompendo vínculos afetivos com a família e a comunidade de origem, são complexas e singulares, mas a falta de dignidade e a violência sempre estão em jogo. Vivências intensas que deixam marcas.

Crianças e adolescentes que saem de casa em direção às ruas, rumo ao desconhecido, parecem muitas vezes quixotinhos urbanos. Buscam uma nova realidade e acabam vivendo uma aventura quixotesca, mas arriscada. Na tarefa de situar-se frente a esse mundo e a si mesmos, passam a confrontar-se com uma realidade crua: onde dormir, o que comer, como se divertir, se expressar, ganhar um dinheiro.

E nessa vibe da rua, a aparente liberdade traz também muitos desafios. Um encontro frequente para quem está nesse circuito é com o uso de drogas e seus perversos mecanismos. Na rua, o tempo ganha imediatismo e oq eu se deseja precisa ser saciado aqui e agora. O uso de drogas encaixa-se aí como uma luva. Para lidar com as dificuldades da vida, as dores que ficaram em casa e as que se fazem na rua, o uso de drogas funciona muitas vezes como “anestésico”.

Socialmente, a situação de rua faz desse lugar um grande cenário de indignação, medo e abandono, mas também de práticas políticas, educativas e assistência social. Estar na rua é pertencer a um lugar de excluídos e entrar em um circuito diferente do circuito da casa e do bairro. É de alguma forma encontrar um novo lugar, um lugar-denúncia de fracassos anteriores e também de apelo. Estas crianças e adolescentes estão pedindo algo. Querem uma vida melhor.

Muitas histórias como a de Maria e Aline são escutadas em ongs, Conselhos Tutelares, abrigos, escolas, delegacias. Cada uma de seu jeito, com suas dores, alegrias, medos, descobertas. Sair desse circuito da rua exige muito trabalho, esforço, desejo, sobretudo dos protagonistas dessas histórias, suas famílias e comunidades.

As oportunidades de encontrar ou reencontrar um lugar melhor para estar e crescer dependem de muitos fatores. No campo dos trabalhos sociais, é fundamental uma ação conjunta entre as instituições. Juntas, constroem um circuito alternativo ao de sociabilidade da rua, em que são oferecidas outras aventuras e formas de relacionamento baseado no respeito e no vínculo.

As organizações sociais possuem uma metodologia própria para abordar essa questão e desenhar com a criança, o adolescente, e a família um projeto de saída da rua e retorno à mátria, ao local de origem.

Estar inserido nesse mundo não é uma simples quastão de entrar para escola, ter um trabalho e voltar a morar em casa. Os vínculos que foram rompidos ou interrompidos precisam ser revistos com delicadeza, para que novas configurações e histórias possam ser vividas.Como diz Paulo Freire, nas práticas educativas a “boniteza e a decência” precisam estar sempre de mãos dadas.

Todo o trabalho das organizações sociais é para que outra história possa ser ouvida, vivida: a história de criaçãs e adolescentes que crescem, se divertem, namoram, descobrem, brincam, têm dúvidas, futuro, estudam em suas comunidades e contam com o apoio familiar, social e institucional. Para isso, muita coisa precisa e pode ser feita ainda no Brasil, muito além das práticas educativas.


Para saber mais:

www.projetoquixote.org.br
www.pro-menino.org.cbr
www.projetotravessia.org.br

ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8069 de 13 de julho de 1990.

Sobre a política nacional de assistência social, consultar no Ministério de Desenvolvimento Social, o SUAS (Sistema Único de Assistência Social) e o programa de Proteção Especial: www.mds.gov.br.

Para obter orientações sobre atendimento de crianças e adolescentes em situação de risco, consultar os Conselhos Tutelares, os Conselhos Municipais da Criança e do Adolescente (CMDCA), os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS) regionais.

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