Quantas músicas tem a música? - Editora Peirópolis

Quantas músicas tem a música?

Por Teca Alencar de Brito

Apesar das muitas diferenças que caracterizam as diversas culturas humanas – do Oriente ou do Ocidente, das grandes metrópoles ou de pequenas aldeias –, todos os seres humanos vivem no linguajar (Maturana, 1997), são seres simbólicos, produtores de arte, que criam e recriam a sua própria história, entre tantos outros aspectos. E se valem da Música, entre outras ricas possibilidades expressivas.

As “muitas músicas da Música” – o choro ou a congada no Brasil, o blues norte-americano, as canções de ninar que as mães cantam para seus bebês ao redor do mundo, assim como as brincadeiras musicais das crianças, entre tantos exemplos – sonorizam modos de perceber, de pensar, de sentir, de dar sentido e de reinventar a própria vida. E se existem músicas com as quais nos identificamos mais, por fazerem parte de nossa cultura, de nosso ambiente, é importante, além de fascinante, conhecer a produção musical de outros povos, de outros tempos e lugares (sendo que alguns nem estão longe de nós, inclusive!).

No século XX, o advento de gravadores e de outros meios de difusão e comunicação, incluindo a internet, ampliou admiravelmente as possibilidades de trocas de informações interculturais, aproximando a produção musical da humanidade e relativizando valores e hegemonias. Pudemos (e podemos) escutar a diversidade musical de tempos e espaços distintos, valendo lembrar que cada qual tem sintonia com modos de perceber o mundo de quem as produz.

Escutando as produções musicais de outros povos, de outras culturas, podemos contribuir no sentido de minimizar diferenças e preconceitos, abrindo caminhos para a aceitação do outro, do estranho, integrando-nos mais enquanto seres humanos. Visando favorecer o contato consigo mesmo e com o outro e, ao mesmo tempo, enriquecer a experiência e o aprendizado musical de crianças e adolescentes, o projeto pedagógico-musical da oficina de música que dirijo em São Paulo valoriza, de modo especial, o contato com a diversidade musical. Escutando, cantando e experimentando tocar instrumentos de procedências diversas, os alunos redimensionam suas ideias de música e de mundo, formando uma consciência integradora que percebe o ser humano, de modo geral, e sua música, em particular, irmanados em um mesmo fazer.

As distinções entre as produções musicais apenas valorizam cada produção, de modo que as músicas do Brasil e de outras partes do mundo convivem em harmonia, sem hierarquias. Rótulos como “erudito”, “popular” ou “étnico”, entre outros, não fazem sentido quando entramos em contato com múltiplas possibilidades que valorizamos e respeitamos, formando ouvintes democráticos e em condições de analisar e criticar, inclusive. Desse modo, é possível instaurar espaços abertos, suscetíveis ao novo, ao diferente, favorecendo a abertura para o outro.

Em sintonia com as reflexões apresentadas acima desenvolvemos, na Teca Oficina de Música, um projeto musical que resultou na produção do livro/CD intitulado Quantas músicas tem a Música? – Algo estranho no museu. Tal projeto utilizou o material musical produzido na escola durante o ano de 2008, lembrando que a convivência com a diversidade musical é uma constante em nosso espaço de convivência musical e humana.

Aproveitando materiais musicais que vinham sendo trabalhados nos distintos grupos de musicalização, estruturamos o projeto no decorrer do processo, lembrando os dizeres do poeta espanhol Antonio Machado: “Caminante no hay camino, el camino se hace ao andar”. Estabelecendo relações entre os distintos trabalhos, dialogando com os alunos para decidirmos – juntos – o que gravar, com disposição para inserir novas propostas ou mudar a rota, construímos um percurso que resultou na produção final do CD e, na sequência, do livro.

Integramos improvisações, composições e interpretações de canções, trabalhando com grande número de instrumentos musicais: latinoamericanos, africanos, chineses, japoneses, europeus e brasileiros, além de brinquedos sonoros e objetos. Estes foram tocados – muitas vezes – por crianças que “não sabiam tocá-los”, pela ótica e pela escuta tradicionais. Aproveitamos o contexto para estimular a exploração de gestos e a produção de timbres, que resultaram em bonitas sonoridades. A partir de um jogo de improvisação realizado costumeiramente em nossas aulas, elaborei uma trama de relações entre as distintas produções musicais, que resultaram na história que deu vida ao livro.

A “brincadeira do museu” é um dos jogos de improvisação que, há muitos anos, captura as crianças de um modo singular: estátuas de músicos com seus instrumentos se movem e tocam quando os visitantes, ou o vigia, se distraem. O contraste entre sons e silêncios, as sensações de expectativa, de surpresa, o inusitado, ao lado da possibilidade de escolher os materiais sonoros a serem explorados, ou conquistados, conferem ao jogo um valor todo especial. Por isso, um dos grupos, formado por crianças com idades entre seis e oito anos, sugeriu que inseríssemos uma versão “do museu” em nosso novo CD, usando instrumentos de diferentes países, ideia que naturalmente foi aceita.

Até então eu não sabia que tal jogo se tornaria o fio condutor do projeto em sua totalidade, até que, dando asas à imaginação, surgiu a história que re-significou todo o trabalho, resultando no livro/CD Quantas músicas tem a Música? – Algo estranho no Museu.

Canções em português, francês, italiano, espanhol, alemão, inglês, japonês e no idioma de Gana, África, compartilharam espaços com canções tradicionais brasileiras e também com as criações das crianças, vocais e instrumentais, criando um espaço de integração onde “isto convive com aquilo”, onde misturamos e arriscamos possibilidades, transcendendo o jogo puramente musical para nos integrar no jogo maior – da vida.

Referências bibliográficas:

GREINER, Christine. Seminário de Estudos Avançados: O outro na comunicação – orientalismos e a criação de novos vínculos. Programa de Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, 2006.

MATURANA, Humberto R. A ontologia da realidade. Cristina Magro, Miriam Graciano, Nelson Vaz (org.). Belo Horizonte: Ed.UFMG, 1997.

Add Comment

Your email address will not be published. Required fields are marked *

Olá! Preencha os campos abaixo para iniciar a conversa no WhatsApp

PHP Code Snippets Powered By : XYZScripts.com