Literatura Indígena e o tênue fio entre escrita e oralidade - Editora Peirópolis

Literatura Indígena e o tênue fio entre escrita e oralidade

Daniel Munduruku*

A escrita é uma conquista recente para a maioria dos 230 povos indígenas que habitam nosso país desde tempos imemoriais. Detentores que são de um conhecimento ancestral aprendido pelos sons das palavras dos avôs e avós antigos, estes povos sempre priorizaram a fala, a palavra, a oralidade como instrumento de transmissão da tradição, obrigando as novas gerações a exercitarem a memória, guardiã das histórias vividas e criadas.

A memória é, pois, ao mesmo tempo, passado e presente que se encontram para atualizar os repertórios e encontrar novos sentidos, que se perpetuarão em novos rituais que abrigarão elementos novos, num circular movimento repetido à exaustão ao longo de sua história.

Assim, estes povos traziam consigo a memória ancestral. Essa harmônica tranqüilidade foi, no entanto, alcançada pelo braço forte dos invasores: caçadores de riquezas e de almas. Passaram por cima da memória e foram escrevendo no corpo dos vencidos uma história de dor e sofrimento. Muitos dos atingidos pela gana destruidora tiveram que ocultar-se sob outras identidades para serem confundidos com os desvalidos da sorte e assim poderem sobreviver. Estes se tornaram sem-terra, sem-teto, sem-história, sem-humanidade. Estes tiveram que aceitar a dura realidade dos sem-memória, gente das cidades que precisa guardar nos livros seu medo do esquecimento.

Por outro lado ? e graças ao sacrifício dos primeiros ? outro grupo pode manter sua memória tradicional e continuar sua vida com mais segurança e garantia. Estes povos foram contatados um pouco mais tarde, quando os invasores chegaram à Amazônia e tentaram conquistá-la como já haviam feito em outras regiões. Tiveram menos sorte, mas também ali fizeram relativo estrago nas culturas locais e as tornaram dependentes dos vícios trazidos de outras terras. Foram enfraquecidos pela bebida, entorpecidos pela divindade cristã e envergonhados em sua dignidade e humanidade.

Estes povos ? uns e outros ? estão vivos. Suas memórias ancestrais ainda estão fortes, mas ainda têm de enfrentar uma realidade mais dura que de seus antepassados. Uma realidade que precisa ser entendida e enfrentada. Isso não se faz mais com um enfrentamento bélico, mas através do domínio da tecnologia que a cidade possui. Ela é tão fundamental para a sobrevivência física quanto para a manutenção da memória ancestral.

Claro está que se estes povos fizeram apenas a “tradução” da sociedade ocidental para seu repertório mítico, correrão o risco de ceder “ao canto da sereia” e abandonar a vida que tão gloriosamente lutaram para manter. É preciso interpretar. É preciso conhecer. É preciso se tornar conhecido. É preciso escrever ? mesmo com tintas do sangue ? a história que foi tantas vezes negada.

A escrita é uma técnica. É preciso dominar esta técnica com perfeição para poder utilizá-la a favor da gente indígena. Técnica não é negação do que se é. Ao contrário, é afirmação de competência. É demonstração de capacidade de transformar a memória em identidade, pois ela reafirma o Ser na medida em que precisa adentrar no universo mítico para dar-se a conhecer ao outro.

O papel da literatura indígena é, portanto, ser portadora da boa notícia do (re)encontro. Ela não destrói a memória na medida em que a reforça, e acrescenta ao repertório tradicional outros acontecimentos e fatos que atualizam o pensar ancestral.

Há um fio muito tênue entre oralidade e escrita, disso não se duvida. Alguns querem transformar este fio numa ruptura. Prefiro pensar numa complementação. Não se pode achar que a memória não se atualiza. É preciso notar que ela ? a memória ? está buscando dominar novas tecnologias para se manter viva. A escrita é uma dessas técnicas, mas há também o vídeo, o museu, os festivais, as apresentações culturais, a internet com suas variantes, o rádio e a TV. Ninguém duvida que cada uma delas é importante, mas poucos são capazes de perceber que é também uma forma contemporânea de a cultura ancestral se mostrar viva e fundamental para os dias atuais.

Pensar a Literatura Indígena é pensar no movimento que a memória faz para apreender as possibilidades de mover-se num tempo que a nega e que nega os povos que a afirmam. A escrita indígena é a afirmação da oralidade. Por isso atrevo-me a dizer como a poeta indígena Potiguara Graça Graúna:

Ao escrever,

dou conta da minha ancestralidade;
do caminho de volta,
do meu lugar no mundo

*O escritor Daniel Munduruku compõe a parcela de índios que vêm criando pontes entre as culturas indígenas e a cultura dominante. Formado em Filosofia com Mestrado em Antropologia Social pela USP, Daniel atualmente é doutorando em Educação pela mesma universidade, além de ser pesquisador do CNPq e diretor-Presidente do Inbrapi. Índio da nação Munduruku, ele foi professor da rede estadual e particular de ensino e atuou como educador social de rua pela Pastoral do Menor de São Paulo. Esteve na Europa diversas vezes, viajando como convidado para proferir conferências sobre a cultura indígena e ministrar oficinas culturais. É professor da Fundação Peirópolis e autor de “Meu avô Apolinário”, “Coisas de Índio”, “Histórias de Índio” e “O Banquete dos Deuses”, entre outros. Pela Editora Peirópolis, publicou O sinal do pajé e As serpentes que roubaram a noite. Além disso, também coordena a Coleção Memórias Ancestrais, série de livros infantis que resgata mitos e lendas das diversas nações indígenas brasileiras.

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