Minientrevista com Mafuane Oliveira
Leia a entrevista com a autora Mafuane
Peirópolis: Mafu, no livro Cinderela do rio, você conta que essa era uma história que ouvia de sua avó. Conte um pouco sobre suas origens e sobre as origens dessa avó.
Mafuane: Minha avó Judite Maria de Jesus, nasceu em 1922 em Riachão de Jacuípe, teve 20 filhos, começo a trabalhar muito cedo: aos 12 já não morava com a mãe, cuidava de uma roça sozinha, se casou aos 15, teve o primeiro filho com 16 e viveu em vários lugares da Bahia, São Félix, Santo Amaro e na capital Salvador, onde a minha mãe nasceu. Toda a minha família materna é da Bahia e, durante as décadas de 1970 e 1980, uma parte dela migrou para São Paulo. Durante muito tempo esses lugares povoaram meu imaginário por meio das histórias, pelas cartas de família e pelas receitas que, vez ou outra, uma prima ou uma tia vinda de Salvador nos regalava, preparando delícias com castanhas, farinha de mandioca, bijus, camarão seco, ou com um vatapá.
Tanto a minha avó quanto meu avô Ireno, padrasto de minha mãe, contavam muitas histórias de “visagem”. Quando mais nova, minha avó sempre falava de uma luz dourada em forma de peixe que ela chamava de Mãe d’Água, essa luz ajudava as meninas mais novas a lavar a roupa e as protegia dos perigos. Mas o curioso é que além dos causos em terceira pessoa, a minha avó contava sobre as vezes em que ela mesma havia encontrado pessoalmente com essa Mãe d’Água em forma de luz dourada.
Tem duas histórias desses encontros que são mais presentes na minha memória familiar. O primeiro se deu quando ela ainda era criança, mas já trabalhava com a sua mãe cuidando sozinha de parte da plantação e das roupas de outras pessoas. Nesta ocasião, a Mãe d’água não lhe fez nada, pelo contrário, ficava só olhando e dando força para ela fazer o trabalho – era como uma forma de proteção. Essa relação de proteção dessa força ancestral das águas é algo que está muito presente no livro também. O segundo encontro se deu quando ela era casada, já tinha filhos, e caiu em uma parte mais profunda do rio, que eles chamavam de “canal ou poço”. Ali ela afundou, achou que ia morrer, porque dizia ter visto todas as estrelas de céu na água, viu sereia, mas foi justamente uma luz dourada, em forma de peixe, que a puxou rápido para a superfície. Ela era muito grata a essa força por não ter se afogado naquele momento.
Durante muitos anos eu carreguei essas histórias de minha vó como um tesouro, meu elo imaginário com a minha ancestralidade familiar baiana. No entanto, isso se aprofundou quando encontrei o trabalho de pesquisa da professora Edil Silva Costa, a quem também quero “femenajear” com esse livro. Ao longo de toda sua trajetória, Edil tem se dedicado a recolher e estudar os contos orais baianos. Em um dos seus trabalhos, dedicado às histórias de “Maria Borralheira”, me deparei com a narrativa oral de Dona Maria Carmelita, contadora de histórias, natural de Inhambupe – BA. Encontrar com essa história foi, de certo modo, a oportunidade de me reencontrar também com as narrativas da minha avó, que me alimentaram tanto na infância, e foram a força motriz para que hoje eu seja uma contadora de histórias.
Foi neste momento que entendi que aquela história não era exclusiva da minha família ou de minha avó, mas sim um patrimônio cultural da mulheridade baiana. Tentei ao máximo, neste processo ser fiel às oralituras dessas mulheres, da minha vó e de quem contou essa história antes de mim, mas como acontece em todos os processos de reconto e adaptação, algumas expressões se perderam porque nem sempre conseguimos imprimir no papel os falares exatos, as risadas e a ira das nossas personagens… Embora toda minha família materna seja baiana, eu nasci e me criei em São Paulo… Ainda assim, espero ser digna da missão de seguir recontando as histórias de nossa gente e nunca deixar que as nossas memórias e oralituras sejam esquecidas!
P: A personagem Cinderela está presente em muitas versões, de diferentes lugares e culturas. O que significa contar essa história em sua versão brasileira? E em nosso contexto social e cultural?
M: Recontar e adaptar esta narrativa no contexto brasileiro, além de ser uma oportunidade de revelar outras paisagens e identidades culturais historicamente invisibilizadas em nosso país, é também uma forma valorizar as oralituras e expressões de quem as contou e não somente focar nas semelhanças narrativas que existem nas milhares de versões de “Cinderelas” que existem não só no Brasil, mas em vários lugares do mundo. Neste trabalho não queria destacar apenas os arquétipos que se repetem nas diversas histórias de encantamento, mas também abordar as questões sociais e de gênero que fazem parte da sociedade em que estamos inseridas.
Nesse sentido, eu tive muitas dúvidas se realmente mantinha o nome Cinderela do título nesse reconto, que é a adaptação de uma performance narrativa que foi nomeada por muitos anos como “Cinderela Baiana”, inclusive foi assim apresentada na TV Cultura de São Paulo em 2019, sendo muito vista e até o momento, com 934 mil visualizações. Em vários centros culturais, eu adaptei também para “Maria e a Flor Mágica”, e quando era professora de educação básica, tentei nomear como “Mãe d’Água”, como minha avó dizia, mas percebia que as crianças as relacionavam com a história da Iara de recontos indígenas e com outros seres das águas, e não era isso que eu queria reforçar.
Na hora de fixar a história nesta versão impressa, na construção conjunta com as minhas editoras Renata e Ana Carolina, chegamos ao entendimento de que seria mais interessante provocar as leitoras e leitores, acostumados com a versão europeia a mergulharem na expectativa de encontrar a Cinderela com seus sapatinhos de cristal e se deparar com menina real e com um amor de mãe metafórico que se transforma ao longo da narrativa. Esta versão também oportuniza um diálogo com a pluralidade do nosso país. Misticamente, no processo de finalização e impressão do livro, eu estava realizando um trabalho em Belém do Pará com educadoras que estão mais próximas da realidade de comunidades ribeirinhas e das culturas afro-indígenas, e embora o lugar geográfico da história seja a Bahia, as mulheres do Norte também se sentiram tocadas pelo reconto, e assim, a possibilidade de imaginar que a história pode ter acontecido em outros rios do Brasil ficou mais forte.
P: Como é este processo de fixar uma narrativa que já foi contada de muitas maneiras? Como será contar essa história oralmente a partir de agora?
M: Fixar uma história é sempre um desafio, no caso de Cinderela do rio ainda é mais desafiador porque, na verdade, estou fixando um trabalho de performance oral e toda adaptação perde um pouco da essência, como eu disse na primeira questão. A partir de agora, a única alteração que pretendo fazer na versão oral é mudar um pouco o final. Acho que os contos também vão se reatualizando e nas riquíssimas trocas com as minhas editoras, também foi consenso que as mulheres desde sempre construíram caminhos próprios sem esperar um príncipe salvador. Não quero estragar o final da história, então fica o convite para leitura! *risos*
P: Você escreveu o texto, Taisa Borges ilustrou. Como é imaginar uma personagem, cenários e ver tais elementos concretizados nos traços de outra pessoa? Como foi acompanhar o processo de ilustração deste livro?
M: Quando eu recebi as primeiras ilustrações, a interpretação que fiz foi a materialização da metáfora “a água guarda memórias e histórias”. Este conto passou pela minha boca, pela boca de outras mulheres, mas quando ele foi fixado em forma de imagem no papel pela Taisa, eu entendi que é o próprio rio que conta a história e nos revela os segredos aconteceram ao longo da vida de Mariazinha.
P: Este é seu segundo livro pela Editora Peirópolis – o primeiro é Mesma nova história, em parceria com Everson Bertucci e Juão Vaz –, como você vê esses dois títulos juntos? Onde eles se parecem?
M: Ambos foram contados e recontados oralmente antes de serem fixados no papel. Eles se parecem em suas intencionalidades de serem narrativas que têm em si uma declaração de amor à arte de cortar histórias e serem uma casa para oralidade.
Os dois projetos editoriais foram feitos com Lei de Incentivo e oferecem contrapartidas com a atividades de formação e lançamentos em bibliotecas públicas. “Cinderela do Rio” terá seu pré-lançamento em Paraisópolis, porque foi neste território periférico que, em 2019, após ouvir a narração de histórias, a mãe de uma criança me deu a tarefa de transcrever a performance narrativa e voltar lá com um livro. Ela me disse que amava a biblioteca comunitária do Instituto Pró-Saber SP, mas nunca tinha encontrado a história de vida dela nos livros – uma mulher migrante da Bahia filha de lavadeira, que chegou em São Paulo com doze anos para “ajudar nas tarefas domésticas” da família que a terminou de criar, em um lugar em que ela não conhecia ninguém… Chorando, ela me agradeceu por ter contato a verdadeira história da Cinderela.
O mesmo acontece com Mesma Nova História: após a narração, as pessoas se emocionam, e sempre me contam sobre suas experiências e relatos sobre familiares com Alzheimer. O que as duas publicações têm de mais forte é o poder de falar de coisas duras como a morte, o abandono ou o trabalho infantil, de maneira encantada, e poder trazer também o universo da brincadeira, fazendo convites para mergulhos na oralidade e nas histórias de vida, mas sobretudo, chamando a atenção para o processo de preservação de legados familiares e da memória, seja ela física, ou emocional. No caso das duas obras, há também o fortalecimento da memória coletiva.
No entanto, o reconto que agora vai morar neste livro é resultado também das minhas performances como contadora de histórias. E isso é muito especial para mim, porque além de uma estrutura narrativa que nos apresenta essa dimensão do fantástico, tão comum nas histórias tradicionais, este trabalho tem fortes elementos da realidade e de biografias múltiplas. Nele, busquei reestruturar as narrativas da minha avó Judite Maria de Jesus, mas também abarcar as trajetórias e as memórias de tantas Marias e meninas-mulheres migrantes que começaram a trabalhar muito cedo e permaneceram em lares que não eram seus, sendo, assim como Mariazinha e sua mãe, “quase da família”.
Sobre a autora Mafuane Oliveira
Mafuane Oliveira é contadora de histórias, escritora, educadora e mestranda no Instituto de Artes da UNESP. Tem dedicado suas pesquisas aos temas da memória, performance, oralituras afrobrasileiras, literatura infanto-juvenil e culturas da infância. É criadora do Chaveiroeiro, projeto de narração de histórias e formação de professores, voltado à pesquisa, difusão e transcrição de narrativas tradicionais africanas e afro-luso-ameríndias e curadoria literária para as infâncias. Também é apresentadora do programa Contos Rá Tim Bum e coautora do livro Mesma nova história, finalista do prêmio Jabuti 2022 na categoria de melhor livro infantil.
A convite das embaixadas do Brasil em Moçambique e em São Tomé e Príncipe, ministrou em ambos os países cursos sobre mediação de leitura e narração de histórias para professores da educação básica e jovens artistas. Trabalhou como arte-educadora no Núcleo de Educação Étnico-racial da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e como podcaster do UNICEF no Brasil, no programa Deixa que eu Conto, roteirizando episódios relacionados a biografias e culturas afrobrasileiras, destinados à infância e educadores. Atualmente é colaboradora da Casa Sueli Carneiro no projeto Fazedoras de Memórias Negras.
Para saber mais, visite: https://linktr.ee/mafuane
Conheça o livro:
Cinderela do rio
R$70,00
Um dos mais conhecidos contos de fadas surge em versão e cenário brasileiros. Mariazinha, menina como tantas crianças brasileiras, é a nossa Cinderela, separada de sua mãe e forçada a realizar trabalhos domésticos desde cedo, em condições análogas à escravidão. Fruto de pesquisa e de referências pessoais de Mafuane Oliveira, a narrativa ganhou ilustrações de Taisa Borges, que ressaltou as cores das paisagens nordestinas, os elementos de nossa cultura popular, com fortes raízes africanas, e a presença do fantástico, tão característico nesse tipo de conto.
Aliando aspectos que reconhecemos nos contextos sociais brasileiros à atmosfera de encantamento, Cinderela do rio apresenta diferentes camadas de leitura, possibilitando aos leitores tanto a emoção da fruição estética como importantes reflexões sobre a desigualdade social em nossa sociedade.
Projeto contemplado pelo Edital ProAC 2023, da Secretaria de Cultura, Economia e Indústria Criativas do Governo do Estado de São Paulo.
eBook disponível para compra nas seguintes plataformas (clique para acessar)
Ficha Técnica
- Editora: Editora Peirópolis
- ISBN: 978-65-5931-345-7
- Código de Barras: 9786559313457
- Dimensões: 22 x 26 cm
- Peso: 0.250 kg
- Páginas: 56
- Idioma: Português
- Classificação: Livre para todas as idades.
- Origem: Brasil
- Capa: Brochura
- Autores: Mafuane Oliveira
- Ilustradores: Taisa Borges
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